Às escuras

‘Estatais de fachada’ operam títulos da dívida pública em prejuízo da sociedade

Seminário discute novo modelo de securitização da dívida pública que se alastra pelo Brasil e é semelhante – mas ainda mais grave – ao que provocou a crise nos EUA e na Europa a partir de 2007

Reprodução/Auditoria Cidadã da Dívida

Venda de títulos securitizados por “estatais não dependentes” sequestra recursos dos contribuintes e entrega aos bancos

São Paulo – Economistas, juristas e estudiosos, brasileiros e estrangeiros, se reúnem a partir desta terça-feira (7), em Brasília, para analisar novos mecanismos de securitização da dívida pública que já vêm sendo aplicados em estados e municípios, e que visam o desvio recursos do contribuinte para o sistema financeiro, através de “empresas estatais não dependentes”, que vendem títulos da dívida no mercado, sem qualquer tipo de controle governamental. Com o tema Esquema Financeiro Fraudulento e Sistema da Dívida – Criação de “Estatais não Dependentes” para securitizar Dívida Ativa e Lesar a Sociedade, o seminário é uma iniciativa do grupo Auditoria Cidadã da Dívida, que defende uma devassa nas contas públicas e mais transparência no processo de endividamento do Estado. 

Segundo cartilha publicada pelo grupo, para operacionalizar esse esquema financeiro fraudulento, uma “empresa estatal” é criada, sob a forma de  Sociedade Anônima.  Embora essas empresas ofendam frontalmente às exigências da Constituição Federal para a criação de  estatais (art. 173), pois não atendem aos requisitos de relevante interesse público ou segurança nacional,  elas estão sendo criadas como “Empresa Estatal Não Dependente”. 

Para a coordenadora nacional da Auditoria Cidadã da Dívida, Maria Lúcia Fattorelli Carneiro, esses novos modelos de securitização, que no Brasil estão se expandindo pelas três esferas de governo, representam a financeirização “em sua forma mais violenta, ilegal e inescrupulosa”, e pode levar ao “aniquilamento das finanças públicas e comprometimento das futuras gerações”. 

Nessa engenharia financeira, as tais “empresas estatais não dependentes” servem de fachada para operações de crédito disfarçadas, com a venda de títulos lastreados em garantias públicas, oferecidos de forma privilegiada a agentes do mercado. 

A elevada remuneração oferecida pela empresa está sendo paga com recursos arrecadados de contribuintes, e que sequer chegarão ao orçamento público, pois ainda na rede bancária estão sendo desviados para uma “conta vinculada” à empresa estatal criada para operar o esquema e, desta, sequestrados em favor dos privilegiados que adquiriram os derivativos”, afirma Maria Lúcia.

Também na terça, esse novo modelo de securitização será tema de uma audiência pública na Comissão de Direitos Humanos do Senado. Na quarta-feira (8), os participantes discutirão com o público, no auditório do Conselho Federal de Contabilidade (CFC), estratégias para ampliar a discussão sobre tais mecanismos e formas de combate-los. 

Em artigo reproduzido a seguir, Maria Lúcia analisa as consequências dessa “engenharia financeira” para o município de Belo Horizonte, alvo de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), que identificou perdas para os cofres públicos de cerca de 70 milhões e benefícios ao banco BTG Pactual.

Confira abaixo o texto completo:

Esquema Financeiro Fraudulento e Sistema da Dívida: Criação de “Estatais não Dependentes” para securitizar Dívida Ativa e lesar a sociedade 

O modelo de securitização de créditos em expansão no Brasil constitui a materialização da financeirização em sua forma mais violenta, ilegal e inescrupulosa, atingindo diversos entes federados – União, Estados e Municípios –  com risco de aniquilamento das finanças públicas e comprometimento das futuras gerações.

Enquanto empresas como Eletrobrás, Casa da Moeda e joias como Cemig, Cedae, entre outras centenas de empresas estatais são privatizadas, novas estão sendo criadas para operar esquema financeiro fraudulento, a exemplo da PBH Ativos S/A, em Belo Horizonte e a Cpsec S/A,0 em São Paulo.

Tais empresas servem de fachada para que o ente federado faça uma operação de crédito disfarçada, ilegal e extremamente onerosa, obtendo recursos no mercado financeiro graças à venda de derivativos financeiros com garantia pública – disfarçados de debêntures sênior – oferecidos ao mercado com esforços restritos, de tal forma que somente privilegiados que têm acesso a esse negócio, sem o registro na Comissão de Valores Mobiliários (CVM) e remuneração exorbitante.

A elevada remuneração oferecida pela empresa está sendo paga com recursos arrecadados de contribuintes, e que sequer chegarão ao orçamento público, pois ainda na rede bancária estão sendo desviados para uma “conta vinculada” à empresa estatal criada para operar o esquema e, desta, sequestrados em favor dos privilegiados que adquiriram os derivativos.  

No caso de Belo Horizonte, onde a Câmara Municipal realiza uma CPI sobre a PBH Ativos S/A, foi constatado que a garantia pública concedida a essa empresa foi superior a 440% do valor recebido: o município recebeu R$200 milhões e se comprometeu com garantias no valor de R$ 880 milhões, acrescido de atualização monetária (IPCA), e ainda paga remuneração adicional mensal sobre esse montante.

Em pouco mais de três anos de funcionamento, essa perversa “engenharia financeira” possibilitou, inicialmente, a realização de uma operação de crédito disfarçada que injetou R$ 200 milhões nos cofres do Município, porém, já provocou (1) uma perda efetiva ao Município de Belo Horizonte de cerca de R$ 70 milhões; (2) o desvio dos recursos correspondentes aos créditos cedidos arrecadados na rede bancária, e (3) o sequestro de cerca de 50% desses recursos em favor do banco BTG Pactual, conforme quadro comparativo das entradas e as saídas de recursos na PBH Ativos  no período de abril/2014 a junho/2017, elaborado com base em dados recebidos pela CPI.

Tanto a operação de crédito como o seu pagamento são feitos de forma disfarçada pela emissão de debêntures sênior e subordinadas, que configuram uma forma de endividamento não autorizado, mascarados por esses derivativos financeiros.

O dano ao Estado é imenso, com impactos atuais e futuros, conforme alertado inclusive por órgãos de controle (Ministério Público de Contas, Tribunal de Contas da União), que têm se manifestado contrários a esse tipo de negócio. Ainda assim ele se alastra e o ministro Henrique Meirelles está buscando implementa-lo também em âmbito federal.

Essa “engenharia” fere toda a legislação de finanças públicas do país, portanto é ilegal. Porém, projetos em andamento no Congresso Nacional visam dar segurança jurídica a esse crime (PLS 204/2016, que tramita no Senado e os projetos PLP 181/2015 e PL 3337/2015 da Câmara dos Deputados).

Esse tipo de securitização é semelhante ao que provocou a crise de 2007 nos EUA e também na Europa a partir de 2010. Porém, o modelo que está sendo implantado no Brasil é ainda mais grave, pulverizado pelos entes federados de todas as esferas.

Ainda há tempo de reverter esse esquema no Brasil, mas para isso a sociedade precisa conhecer e divulgar esse novo mecanismo perverso. A Auditoria Cidadã da Dívida tem produzido materiais, a exemplo do folheto disponível em https://goo.gl/NScngN e o vídeo/animação disponível em https://goo.gl/vo9Bys.

Sseminário internacional sobre o tema ocorrerá em Brasília, de 7 a 9 de novembro de 2017, com a presença de especialistas nacionais e internacionais. O objetivo é reunir especialistas, acadêmicos, juristas, políticos e militantes  para analisar a atuação do Sistema da Dívida no Brasil e em outros países da Europa e América Latina, com foco na atuação dos recentes mecanismos financeiros perversos que aprofundam a financeirização e provocam simultaneamente a geração de dívida, o desvio de arrecadação e o seu sequestro em favor do setor financeiro, a fim de lançar luz sobre o tema e articular ações concretas em âmbito nacional e internacional nos diversos campos – jurídico, legislativo, acadêmico, social e político – visando popularizar o conhecimento desses mecanismos e combatê-los.