Dívida de R$ 67 bilhões deve dificultar realizações de Haddad em São Paulo

Junto com o poder, petista receberá débitos que superam dobro das receitas municipais. Novo prefeito se encontra com Dilma e vai tratar do assunto. Governo federal é principal credor

Os dividendos são problema antigo, mas começaram a se agravar em 2000, quando a prefeitura assinou um acordo com o governo federal (Foto: Bibi/Flickr)

São Paulo – Uma “herança pesada” pode jogar água no feijão do novo prefeito de São Paulo, Fernando Haddad, e deverá dificultar a consecução das obras e ações previstas nas 124 páginas de seu plano de governo. Eleito em segundo turno ontem (28), com 55,5% dos votos válidos, o petista assumirá o Palácio do Anhangabaú no próximo 1° de janeiro. Junto com o poder, receberá uma dívida nada desprezível.

De acordo com o Balanço Geral de 2011, publicado pela Secretaria de Finanças, a capital ostenta um passivo permanente de R$ 67,4 bilhões, dos quais R$ 48 bilhões correspondem a dividendos com o governo federal. O débito é duas vezes superior à receita anual do município, que no ano passado girou em torno de R$ 32 bilhões, e 630 vezes maior que o último superávit obtido pela prefeitura: R$ 106 milhões.

Já como prefeito eleito, Fernando Haddad vai a Brasília nesta segunda-feira (29), onde terá audiência com a presidenta Dilma Rousseff. Além de receber os cumprimentos pela vitória nas urnas, ele vai conversar sobre a renegociação dos débitos, tidos como o maior entrave para a expansão da cidade – a Lei de Responsabilidade Fiscal impede novos empréstimos junto ao governo federal, maior credor da gestão Gilberto Kassab (PSD).

De acordo com especialistas ouvidos pela RBA, a dívida paulistana impacta sobremaneira na vida de todos os habitantes da cidade, pois reduz a capacidade de investimento na melhoria dos serviços públicos em todas as áreas. “Todo mundo que deve precisa comprometer parte de sua receita futura para pagar compromissos do passado, e tem menos recursos para tocar suas necessidades presentes”, resume Adriano Biava, professor da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade (FEA) da USP.

Origens

Os dividendos municipais são um problema antigo, mas começaram a se agravar no ano 2000, quando a prefeitura assinou um acordo “salvador” com o governo federal. Na época, a cidade era administrada por Celso Pitta, do antigo PPB, e ostentava uma dívida de R$ 11,3 bilhões – cerca de seis vezes menor do que hoje. Ainda assim, o prefeito estava tendo dificuldades para quitá-la. Por isso, recorreu a Brasília, que então conduzia um amplo processo de renegociação das dívidas de estados e municípios de todo o país.

“Pitta não contraiu novas dívidas, mas sofreu com a política de juros do governo Fernando Henrique Cardoso, que praticou um aumento extraordinário da taxa Selic”, resgata Amir Khair, ex-secretário de Finanças de São Paulo durante o governo da prefeita Luiza Erundina (PT). “Até os anos 2000, a correção da dívida estava atrelada à Selic. Quando FHC botou a Selic em 40%, municípios e estados tiveram suas dívidas multiplicadas violentamente. Foi uma política suicida.”

Impossibilitado de honrar os compromissos assumidos anteriormente pela prefeitura, Celso Pitta, como muitos outros prefeitos do país, transferiu as dívidas de São Paulo para o governo federal. Em troca, a cidade teria 30 anos para restituir os recursos ao Tesouro Nacional. Como a Selic estava nas alturas, a medida foi vista como uma espécie de subsídio federal às dívidas estaduais e municipais. O acordo previa que as prefeituras pagassem seus débitos à União, e não mais a seus credores, com uma taxa de juros de 6% ao ano mais o IGP-DI (Índice Geral de Preços Disponibilidade Interna).

Porém, esse regime de juros apenas se manteria se a prefeitura quitasse ao menos 20% do total da dívida nos primeiros 30 meses do contrato – ou seja, até 2003. Caso contrário, o Tesouro passaria a cobrar juros de 9% mais IGP-DI. Foi o que ocorreu durante a gestão Marta Suplicy (PT). “Pagar 20% da dívida inviabilizaria a administração da cidade”, lembra o economista Odilon Guedes, coordenador do Grupo de Trabalho sobre Orçamento da Rede Nossa São Paulo. Por isso, a correção anual aumentou, e assim continua até os dias de hoje.

Crescimento

Pagando religiosamente juros de 9% ao ano mais IGP-DI para o governo federal, a prefeitura gastou R$ 18,6 bilhões com a dívida entre 2000 e o que vai de 2012. “O passivo aumentou devido somente à forma estabelecida de sua correção”, explica Odilon Guedes. “Não é que o governo municipal tenha emprestado novos recursos para fazer moradia popular ou metrô: o valor cresceu só por causa dos juros. Estamos pagando somas enormes para uma dívida que cresce por causa dela mesma.”

E como cresce. A Secretaria de Finanças afirma que, dos R$ 18,6 bilhões que a cidade gastou com a dívida, apenas R$ 1,07 bilhão foi utilizado para amortizar – ou seja, reduzir – os débitos com o governo federal. Todo o resto foi gasto apenas com o pagamento de juros. Se nos anos 2000, com a Selic elevada, o acordo pode ter sido vantajoso, atualmente, com a taxa básica de juros fixada em 7,5% ao ano, o acordo com a União é desfavorável. Essa diferença no cálculo dos juros fez com que a prefeitura desembolsasse, em 12 anos, R$ 16,8 bilhões em encargos adicionais. “É uma coisa absolutamente desproporcional”, afirma o coordenador da Rede Nossa São Paulo.

Para ilustrar o tamanho do rombo, Odilon Guedes gosta de comparar o dinheiro gasto com a dívida ao custo da ampliação da malha metroviária na cidade, apontada como uma das soluções mais eficientes para o caótico trânsito paulistano. “Com os R$ 18,7 bilhões que foram destinados à dívida, daria para construir 72 quilômetros de metrô e dobrar a rede que temos hoje”, compara. “A Lei de Diretrizes Orçamentárias do ano que vem prevê o pagamento de novos R$ 2,7 bilhões em juros e R$ 1,3 bilhão em amortização. Isso dá R$ 4 bilhões, ou seja, mais 16 quilômetros de metrô perdidos.”

‘Tem de pagar’

O professor da FEA-USP, Adriano Biava, não nutre grandes ilusões sobre o futuro da dívida paulistana. “Para resolver o problema, temos de pagá-la”, diz. No entanto, em audiência recente na Câmara Municipal, o secretário adjunto de Finanças de São Paulo, George Tormin, apresentou uma desanimadora projeção. Pelo contrato firmado com o governo federal, os débitos com a União deveriam estar totalmente quitados em 2030. Contudo, no ritmo atual, daqui 28 anos devem alcançar impossíveis R$ 220 bilhões – e apenas por causa dos juros.

Os especialistas ouvidos pela RBA concordam que, para resolver o problema, a prefeitura de São Paulo deve negociar uma mudança no indexador da dívida. Isso significa abrir um canal de diálogo com o governo federal para que o regime de juros deixe de ser definido pelos atuais 9% mais IGP-DI. “A prefeitura fez projeções com outros indexadores e todos eles resultaram numa correção mais favorável”, lembra Odilon Guedes, da Rede Nossa São Paulo. O economista cita algumas taxas que poderiam substituir o acordo vigente.

Uma delas é a própria Selic, que está em rota ininterrupta de decrescimento desde julho de 2011 – o que é ótimo para os estados e municípios endividados caso consigam uma mudança de indexação. Mas o coordenador da Rede Nossa São Paulo lembra ainda a Taxa de Juros de Longo Prazo (TJLP), que é utilizada pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social na hora de oferecer crédito às empresas brasileiras; e o Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA). Nesse caso, com cobrança retroativa, a dívida paulistana com o governo federal seria, em vez de R$ 48 bilhões, R$ 28,4 bilhões (Selic), R$ 9,4 bilhões (TJLP) ou R$ 19,2 bilhões (IPCA).

Mas receber tratamento diferenciado da União acarretaria outros problemas – estes de ordem política. “Se você cede em benefício de uma cidade, todas as outras vão se sentir no direito de pedir alguma coisa”, contextualiza o ex-secretário de Finanças, Amir Khair. “No setor público fica difícil oferecer cortesias. Até porque o governo federal tampouco tem recursos sobressalentes para abrir mão do dinheiro que está previsto no contrato.”

Soluções

Adriano Biava defende uma renegociação que não puna os cidadãos de outras cidades do país. “Não é justo que o morador de Ribeirão Preto ou Belém tenha que cobrir uma dívida assumida pelos prefeitos eleitos pela população de São Paulo”, pontua. O professor lembra que o governo federal não é o credor final das dívidas paulistanas, e um eventual perdão da dívida acarretaria à União deixar de investir em outras regiões do Brasil para destinar esse dinheiro ao pagamento das dívidas paulistanas. “Mas é uma decisão política”, lembra. “Se o governo quiser perdoar, o que eu acho um absurdo, ele pode.”

A solução apontada pelo acadêmico da USP é controversa: aumentar a arrecadação de impostos. Isso poderia ser feito elevando os tributos municipais, criando novas taxas, acabando com as isenções vigentes ou promovendo um ciclo de crescimento econômico na cidade que inevitavelmente ampliaria a massa de impostos. “Não tem jeito: ou diminuímos as despesas ou aumentamos as receitas.” Paralelamente, Biava propõe a realização de uma auditoria para analisar a legitimidade e legalidade da dívida paulistana. Assim a prefeitura pagaria apenas o que realmente deve – e evitaria gastar recursos com possíveis falcatruas do passado.

O economista Odilon Guedes vislumbra outras soluções. Além de mudar o indexador da dívida, o coordenador da Rede Nossa São Paulo acredita que o governo federal poderia aumentar seus investimentos na cidade como forma de compensar a transferência de recurso em forma de juros. “Pagamos um dinheirão em IPTU, ISS e outros tributos, somos o município que mais contribui com impostos à União”, recorda. “O governo federal deveria devolver parte desses R$ 18 bilhões investindo em metrô, creche, hospitais etc. Só não dá pra continuar como está. Isso prejudica todo mundo.”

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