Belluzzo: ‘O Brasil precisa abrir um novo espaço de crescimento’

Economista indica necessidade de incorporar novos setores da indústria para evitar perda de força; sobre o mensalão, lamenta que ministros do STF tenham se transformado em 'heróis vingadores'

O economista Gonzaga Belluzzo defende nova visão sobre a atividade econômica do século 21 (Foto: Gerardo Lazzari/RBA)

São Paulo – Para o economista e professor Luiz Gonzaga Belluzzo, que completará 70 anos no dia 29, a situação difícil vivida por vários países não começou agora. Veio lá de trás, com um desmonte da base social construída nos anos 1960 e 1970. O resultado são três décadas de estagnação salarial, descrédito com o sistema político e, mais grave, a perda da esperança. Ele vê o momento com pessimismo. “Para dizer a verdade, não estou vendo forças sociais capazes de enfrentar essa situação”, diz Belluzzo, que se mostra um pouco mais animado com o Brasil, desde que aprofunde as medidas de combate à desigualdade e busque nos caminhos para o crescimento.

Colunista assíduo e continuamente procurado por jornalistas, com os quais convive desde a ditadura, ele critica a incapacidade dos governos de promover uma verdadeira desconcentração no setor de comunicação no país, acompanhada de uma legislação adequada. “Não há liberdade de expressão sem pluralidade. E não há liberdade acima da lei”, afirma, manifestando ainda apreensão com as consequências do julgamento do dito mensalão. 

Todos os indicadores mostram atividade mais fraca, as previsões otimistas do início do ano foram se tornando moderadas ao longo dos meses, a indústria não vai bem. Com tudo isso, o mercado de trabalho mostra taxas de desemprego baixas e continua criando vagas formais. Há um aparente paradoxo nisso?

Em primeiro lugar, atividade mais fraca não significa recessão. A economia está crescendo em um ritmo muito baixo, estamos caindo. De 2010 para 2011, nós passamos de 7,5% para 2,7% e estamos resvalando para 1,6%. Em segundo você teve uma reacomodação na formação da renda, que portanto teve impacto no emprego. E aí tem muita importância o salário mínimo, os programas sociais do governo. Você teve de fato uma expansão autônoma e uma mudança na estrutura dos serviços. Passou de ocupações de nível de renda muito baixo e foi graduando isso à medida que a economia continuou mantendo crescimento. Essa reacomodação interna está ajudando a manter no nível mínimo, porque o ritmo de atividade, a despeito dos elementos que foram responsáveis pela recuperação em 2008, sobretudo o consumo, financiamento de duráveis, está perdendo força. 

Além disso, no caso da indústria o que ocorre é que visivelmente o crescimento das importações, a concorrência chinesa, valorização do câmbio no passado, teve um papel importante para prejudicar o desempenho. Quando a gente fala que o Brasil está num processo de desindustrialização, quer dizer que estamos perdendo setores e não temos realizado políticas que incorporem os novos setores, que são os mais importantes da indústria moderna. Se você olhar o que aconteceu nos últimos 30 anos, o Brasil deixou de incorporar esses setores. É uma desindustrialização relativa.

Claro que há também desorganização de certas cadeias produtivas, mas não é só isso. É também a perda de capacidade de incorporar os novos setores. O que temos de nos perguntar é o seguinte: até quando essa inércia do crescimento vai conseguir manter taxas positivas? O Brasil não tem por que entrar num processo parecido com os Estados Unidos e da Espanha. Os fatores que desencadearam a crise lá não estão presentes aqui. Temos um círculo de crédito, mas não temos uma bolha, que é devastadora. 

O que o Brasil precisa é abrir um novo espaço de crescimento, é o que o governo está querendo fazer, com investimento em infraestrutura, com as PPPs, com a incorporação de novos consumidores, porque não dá para continuar mantendo esse ciclo de consumo em cima de consumidores que já estão endividados, você tem de incorporar outros. Esse processo está perdendo fôlego. Basta olhar as taxas de crescimento do emprego, não do desemprego.

A nossa taxa de investimento não é muito baixa?

É muito baixa por várias razões. Você manteve a taxa de juros muito alta durante muto tempo, deixou o câmbio valorizar. O problema da valorização do câmbio não é apenas que ele deixa importar muito, é que ele não permite ao empresário ter uma perspectiva. Se você investe a R$ 2,20 e a taxa vem a R$ 1,60, isso aumenta a incerteza do investimento, o industrial, sobretudo. A oscilação às vezes é pior do que o nível. Você precisa dar condições estáveis, porque o investimento é muito sensível. Vários economistas sabem disso, ou se não sabem ainda vão saber. Não é possível ter uma taxa investimento estável sem que o Estado dê garantias. O investimento produtivo é muito sensível e exige mesmo uma coordenação do Estado. Acho que a Dilma está fazendo certo, fazendo as UPPs… A gente precisa sair dessa discussão boba. São concessões. Não há como fazer com que o país volte a crescer 3%, 4%, sem botar a taxa de investimento em 20%, 22%, tem de ir aos poucos.

O senhor já expôs sua preocupação com a crise nos Estados Unidos e na Europa. A solução ainda tem sido aquela ortodoxa, de cortar gastos públicos. Mas, pelo visto, não deu muito certo.

Fracassa porque – e isso é o mais importante, é gravíssimo – joga milhões de pessoas na miséria, no desemprego. Você tem 55% de jovens desempregados na Grécia, 53% na Espanha, onde a taxa geral está chegando a 25%. Isso também está se espalhando pela Itália… É evidente que essa forma de combater a crise não vai funcionar. Tem até um artigo do (cineasta) Pedro Almodóvar no Washington Post espanhol, em que ele manda uma carta para o Rajoy (Mariano Rajoy, primeiro-ministro da Espanha) que se referiu à maioria silenciosa por não ter ido à praça Neptuno (em Madri), fazer o protesto (contra as políticas de austeridade, no final de setembro). Ele disse: eu sou da maioria silenciosa, não fui ao protesto, mas quero dizer que o senhor na verdade está levando a Espanha para o caos. E está mesmo. A questão hoje é o panorama sombrio, terrível.  

Por políticas mesmo…

Por políticas que levaram à adoção de medidas que contribuíram para erodir a base econômica e social do crescimento dos anos 1960/70. No fundo, se desmontou toda aquela teia de relações construída pelo Estado de bem-estar que ajudava a manter o nível de atividade razoável, uma criação de renda, emprego, incorporação de novos empregos. Não há dúvida que isso tem uma lógica interna. O que aconteceu, tanto nos Estados Unidos como na Europa? Você foi desmontando os sistemas tributários progressivos, diminuindo o estímulo à criação de novos empregos pelo investimento, que declinou. 

Quando foi dado o processo de internacionalização da economia, dito globalização, pouca gente se deu conta da mudança tectônica. Isso foi lentamente crescendo nos anos 1960/70, e à medida que você foi incorporando países do tamanho da China, com uma taxa de salários muito baixa, isso é da lógica do capitalismo. As empresas começaram a se deslocar para as regiões de menor custo relativo. A China se ajustou muito bem a isso. Eles chegaram e falaram: aqui é câmbio valorizado e incorporação de uma massa de produtores que vêm do campo com um salário muito baixo. Isso que deu uma taxa de crescimento de 12%, 13% para eles. A manufatura toda se deslocou para lá, sobretudo a americana, mas também a japonesa, a europeia. Quem não estava na China não estava em lugar nenhum. Eles promoveram taxas de investimento de 50% do PIB, saldos comerciais de 10%. Faz a soma. 

Eles montaram uma máquina de produzir manufatura barata. Quando a gente se deu conta, eles estavam entrando aqui com bola de futebol a R$ 1,99, têxtil… E eles foram graduando a produção. Começaram com produtos de menor valor, de menor intensidade tecnológica, e foram graduando as exportações para máquinas elétricas, eletrônicos. 

Isso tem como contrapartida uma redução do papel da indústria nos países desenvolvidos. É natural que caia nos países mais avançados por causa dos ganhos de produtividade. Mas a queda foi muito acentuada. Isso criou um problema muito grave para os mercados de trabalho, porque o investimento na economia territorial americana é baixo. As empresas estão ganhando dinheiro nos Estados Unidos, mas estão investindo na China. Porque a demanda, sobretudo de bens de consumo, está nos Estados Unidos, e os investimentos estão na China. Estou vendo essa situação de uma maneira muito pessimista. Para dizer a verdade, não estou vendo forças sociais capazes de enfrentar essa situação. Estou vendo esses movimentos, eles podem se cristalizar em outras coisas, mas por enquanto as questões colocadas são muito vagas.

Disperso?

Muito disperso. Acho que talvez na Europa, sobretudo, isso comece a ter uma reação mais forte e politicamente mais definida. O fato é que ao mesmo você destruiu o sistema político. Ninguém acredita mais nos partidos. O sistema político está totalmente desacreditado. Isso é perigoso.

E o Brasil?

Acho que o Brasil tem um horizonte, se souber aproveitar suas peculiaridades. Todo mundo diz que o Brasil vai sofrer, mas o Brasil tem um grau de abertura muito baixo. Então, tem possibilidade de expandir o seu mercado interno. Não creio que os chineses vão deixar a China desacelerar para 2%. Vamos manter uma exportação de commodities ainda razoável, e tem o pré-sal, que eu espero que o governo não deixe a peteca cair, vamos virar exportadores líquidos de petróleo. Isso é importante para o Brasil resistir a uma crise externa. 

Quanto à inflação, você imaginar que pode ter inflação nos próximos cinco, dez anos no mundo, você deve ser internado num hospício. Você está mal conseguindo segurar a economia. É uma situação depressiva, uma depressão que não se realiza. Os consumidores não podem gastar porque estão pagando as dívidas, ou recuperando seu patrimônio. Os bancos não emprestam e as empresas não investem. Você tem capacidade ociosa no mundo inteiro, mas muita. 

O Brasil está tomando providências, botando tarifas, e tem de botar mesmo. Quanto mais a crise se aprofunda, o pessoal corre pro dólar. Todo mundo acumula reservas em dólar, e isso fortalece o dólar. O problema do desequilíbrio é que o dólar é fraco, é que é muito forte, e obriga os países que não têm moeda reversível a ter reservas altas. E os Estados Unidos não conseguem reverter o déficit dele. Os outros não deixam. A discussão do dólar fraco é uma bobagem. O dólar é forte, mas inconveniente para a economia mundial.

Nos últimos anos, o Brasil cresceu pelo mercado interno.

É, teve uma expansão boa das exportações por causa das commodities. Mas do ponto de vista de formação de renda e emprego, o Brasil nunca teve esse modelo de liderança das exportações. Quando a gente fala de câmbio, esse modelo de empurrar pro vizinho se mostrou inviável, porque todo mundo quer fazer a mesma coisa. O Obama não disse que ia fazer as exportações americanas crescerem 5% ao ano? Cadê? Precisa combinar com os russos. Ou os chineses (risos).

O Brasil cresceu nos últimos anos, reduziu sua desigualdade, mas ainda assim é muito desigual, os salários continuam muito baixos, há uma massa enorme excluída. O país caminha também no sentido de redução desse desequilíbrio?

A gente vai ter de caminhar muito. Por isso é importante que o Brasil não deixe de crescer e continue com essas políticas de incorporação. Há um longo caminho ainda. As raízes da desigualdade aqui são muito fundas. Acho que algumas medidas corretivas foram tomadas, mas não são suficientes. Acho que daqui pra frente o Brasil vai ter de acentuar essas medidas de correção. Também corrigir um pouco o sistema tributário, que não é fácil. Essa etapa de redução das desigualdades chegou ao limite.

Em alguns artigos, o senhor externa preocupação com a mídia, entre o que acontece e o que se publica. E o senhor se relaciona com a mídia há muito tempo, ocupou cargos públicos, conviveu com diferentes épocas de redações. Hoje, se sente um pouco espantado com o que lê?

Já vivi como assessor econômico do PMDB no regime militar. Você tinha censura. E a censura era bastante diferente nos vários órgãos de comunicação, uns tinham mais, outros menos. A gente precisa ter bem claro uma coisa, que não se discute mais. É um fenômeno muito latino-americano, que é a colaboração estreita que os órgãos de comunicação no Brasil tiveram com a ditadura. Quem não lembra é melhor fazer um esforço de memória, porque isso foi uma coisa terrível. O golpe de 1964 foi patrocinado em boa medida pela mídia. Algumas empresas cresceram no regime militar. Algumas deram colaboração aos órgãos de repressão, de tortura. Não podemos esquecer isso.

Claro que, como toda revolução, o processo revolucionário acaba devorando seus filhos. À medida que foram se agravando as condições e a legalidade foi cada vez mais ofendida, o regime foi se fechando, sobretudo no período 1969/1973, antes da abertura do Geisel, as restrições passaram a ser maiores e passaram a fazer censura nos órgãos da imprensa, dentro da redação. Quando houve a redemocratização, para você ter uma ideia, com participações diversas a imprensa teve um comportamento de hesitação e cautela, por exemplo, em relação ao movimento das diretas. A gente não pode esquecer essas coisas. 

Vocês (Revista do Brasil) são um órgão de imprensa alternativo. Não deveria ser assim, deveria ser uma revista que tivesse mais circulação, mais presença. Isso tem a ver também com a publicidade oficial. Governo atrás de governo, eles não conseguem enfrentar essa questão devidamente. A obrigação do governo é distribuir as verbas publicitárias para, como disse o filósofo alemão Habermas, estimular a diversidade. Não concentrar nas mãos dos mesmos uma massa de dinheiro que só reforça a concentração. Na verdade, eles não estão interessados em liberdade de expressão, estão interessados em liberdade de expressão deles. Mas a liberdade de expressão é uma prerrogativa que não é do dono do jornal. Nem dos jornalistas. É do cidadão. Isso é elementar. 

E se introduziu um fenômeno novo, muito grave, que é a informação sem apuração. Não há estrutura para apurar, então você fala qualquer coisa. E isso sai na urina da liberdade de informação. Você fala qualquer coisa de qualquer pessoa. Hoje em dia você não tem como se informar a não ser através desses canais, porque o mundo é muito complexo, variado. Você tem de ter equipes e estruturas que possam capturar essa informação, processar e participar corretamente essa informação para o público. Espero que isso mude, e até que as mídias sociais ajudem nisso, se houver um pouco de percepção da gravidade do que eles estão fazendo. 

É uma ideia errada de que a liberdade de informação está acima da lei. Não há liberdade acima da lei. Isso os bons filósofos políticos, o Heigel, sabiam perfeitamente. A liberdade moderna exige o amparo da lei, a restrição da lei. Não existe a liberdade em abstrato. É selvageria. O vale-tudo, você ameaça certamente a vida civilizada. Como você pode se defender de um ataque a sua honra? No limite, você está incitando à violência, porque você não permite ao outro que responda, você bloqueia a resposta do outro. Essa discussão sobre a imprensa é muito importante. Sugeri várias vezes que as universidades fizessem esse debate, aberto, não patrocinado pelos donos de jornal. Os donos de jornal serão convidados também, mas isso tem de ser feito pela sociedade, com as pessoas participando livremente, sem serem ameaçadas. Porque eles ameaçam, né? 

O senhor acha que o cidadão interessado tem uma boa cobertura (sobre o julgamento do mensalão)?

Acho que o problema não é a cobertura propriamente dita. O problema é que se você inclui na cobertura o debate das posições dos magistrados, eu acho que não… Na maioria das vezes tenho visto uma coisa muito unilateral. O que me preocupa não é o resultado do julgamento. É a forma, porque você está deformando o rito processual, entre outras coisas. Você está aceitando certas teses que, se levadas adiante, são muito perigosas para a vida democrática, como a do domínio do fato. Isso é uma tese muito perigosa que é, digamos, uma inovação ruim no Direito Penal. Mesmo que você não tenha provas da participação de uma pessoa na prática de certos ilícitos, pela sua posição na relação com os demais você infere que ele é culpado. Isso é uma violação do princípio da tipicidade da lei penal, da descrição da conduta de uma maneira mais clara. Acho que o Supremo está prestando um desserviço para o Brasil ao aceitar isso por conta de pressões, sejam pressões autênticas da opinião pública, mas não são, porque são de uma parte da opinião pública. Quem tem noção do que foi o movimento de fascistização e nazificação na Alemanha, sabe como esse processo se dá, se dá por dentro da sociedade. E é o que estou vendo aqui. A discussão não é se o cara é culpado ou não – provavelmente, você tem culpa ali –, é a maneira de apurar.

O juiz condenador virando herói.

É, herói vingador. É o caso desse cidadão que é a encarnação… Os processos são incrivelmente parecidos. A sociedade completamente atarantada, as pessoas esvaziadas, elas são esvaziadas de valor. Então, recorrem ao herói vingador, ao chefe. Muito sério isso.

O senhor também fala em educação. As pessoas perdem a capacidade de estabelecer raciocínios…

É preciso tomar muito cuidado com o que se está fazendo com o processo educacional, não só no Brasil, mas no mundo inteiro. Você está deseducando as pessoas, no sentido de que você dá uma educação técnica muito boa, profissional, mas do ponto de vista da compreensão de sua situação no mundo, na sociedade – e isso não tem a ver com as posições que as pessoas têm, mas da capacidade de inquirir sua situação, de perguntar para o mundo – esse sistema deseduca. É um processo terrível, porque isso começa com os pais, que já foram deseducados pelo sistema e incutem nos filhos as ideias de que eles vão para a universidade, por exemplo, para ter um caixa de ferramentas para resolver problemas e não se transformar em homens, cidadãos que possam participar da vida política. Você desvaloriza isso. E não importa que eles sejam bons engenheiros, bons médicos, mas são péssimos cidadãos, porque não têm nenhuma noção do outro, não sabem onde estão parados. O sistema educacional moderno está deseducando as pessoas.