Sustentabilidade

Cinza que te quero verde: vizinhos usam praças para fazer São Paulo menos hostil

Sem se preocupar em produzir alimentos, cidadãos conseguem se articular e criar ações que rompem isolamento e garantem boa convivência

Horta comunitária na região da Pompeia começou com mutirão em janeiro e já se transformou em bloco de Carnaval (Foto: Ricardo Vicenzo/Divulgação)

São Paulo – Tem a ver com poesia a reprodução espontânea de hortas comunitárias nas praças de uma capital que, à primeira vista e à segunda também, é a mais cinzenta do Brasil. Graças à iniciativa de pequenos grupos interessados em “outra cidade possível” e a uma grande ajuda das redes sociais, com destaque para o Facebook, um número cada vez maior de pessoas começa a se juntar em torno dos pequenos pedaços de terra que teimam em existir nas regiões mais urbanizadas de São Paulo.

Ao contrário do que ocorre em áreas mais periféricas, como São Mateus, na zona leste, ou Parelheiros, na zona sul, onde há mais espaço disponível e menos especulação imobiliária, a razão principal dos novos canteiros abertos dia a dia nas áreas centrais não é abastecer os moradores com verduras e legumes. “A horta não vai tirar a fome de ninguém, mas é uma oportunidade pra galera começar a pôr a mão na terra, ver as plantas crescerem e colher”, diz Paulo Fonseca, morador da Vila Pompeia, na zona oeste da capital, um dos bairros paulistanos que recentemente teve um terreno abandonado transformado em área de plantio coletivo para a vizinhança. “Existe um processo de resgate do campo que é muito importante.”

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Não só do campo, mas da cidade em si, da convivência, do comprometimento na vida em comum – aquela ideia original que há tempos motivou seres humanos a viverem um ao lado do outro. “Talvez toda a proibição louca que vivemos em prefeituras passadas tenha gerado uma revolta silenciosa e uma necessidade de ganhar as ruas, exercer cidadania, ocupar espaços públicos”, argumenta. “Esse pedacinho de terra tem conectado pessoas que às vezes moram no mesmo quarteirão, mas que nem se conheciam.”

Passo a passo

A horta da Vila Pompeia é pequena, mas cresce a cada dia – não em tamanho, pois está limitada por muros, mas em participação e iniciativas. Começou num domingo chuvoso de janeiro, durante as férias, com cerca de 35 pessoas que atenderam a um despretensioso chamado pelo Facebook. O mutirão se desenrolou e, mesmo com o clima desfavorável, os vizinhos pegaram no cabo da enxada para cavocar uma terra compactada pelo abandono.

“Tivemos que fazer um trabalho violento das 11 da manhã às 5 da tarde”, lembra Paulo. “Isso aqui era puro azulejo e tijolo. Uma terra horrível.” Em seis horas de força-tarefa, a mudança foi brutal. Visitei a horta da Pompeia três dias depois de seu nascimento. As lascas de entulho foram usadas para demarcar os canteiros, que foram construídos em forma de mandala, misturando pés de alface, flores coloridas e as poucas plantas que já existiam por ali. Apesar do descaso da prefeitura, alguns transeuntes sempre se preocuparam com o lugar. Vez por outra, davam uma geral, tiravam um pouco de lixo, plantavam uma árvore ou espalhavam cartazes rogando aos vizinhos que por favor cuidassem da pracinha. Até então, os frutos tinham sido parcos. Talvez porque quem se preocupava com a conservação do terreno nunca tinha pensando em usar as redes sociais.

As redes sociais foram 'essenciais' para articular vizinhos (Foto: Ricardo Vicenzo/Divulgação)

“O Facebook foi fundamental”, reconhece Átila Fragozo, outro dos organizadores da horta. “Por meio do saite conseguimos mobilizar muita gente que não conhecíamos e fazer uma estimativa de quantas pessoas viriam, o que foi importante para planejar um café da manhã e conseguir ferramentas.” Claro que a boa e velha comunicação boca a boca com vizinhos também surtiu efeitos – mais efetivos, dizem. Enquanto trabalham na terra aos domingos, os vizinhos da Pompeia abordam gente que passa olhando cheia de curiosidade. Assim vão informando e convidando quem não usa Facebook – ou não está conectado aos fóruns virtuais de discussão que se proliferam em São Paulo para conversar sobre hortas.

Articulações

Um desses grupos é o Hortelões Urbanos, criação recente de duas jornalistas paulistanas que já possui mais de 2,7 mil membros de todo o país. As responsáveis são Cláudia Visoni e Tatiana Achcar. A primeira começou a plantar intuitivamente algumas hortaliças em casa para tirar a cabeça da rotina, sair da frente do computador e desestressar. A segunda viajou o mundo conhecendo hortas urbanas – e trabalhando nelas. Conheceram-se durante uma palestra em que Tatiana contava toda essa experiência. Bateram papo e, juntas, resolveram organizar uma oficina. “A ideia era estimular as pessoas a plantarem, trocar ideias e vivências”, diz Cláudia. “Cerca de 50 pessoas participaram e, pra não perder o contato, criamos um grupo de emails chamado Hortelões Urbanos, que depois migrou pro Facebook.”

Isso era julho de 2011. Ano e meio depois, o bate-papo virtual ganhou ares de movimento. “Em fevereiro de 2012, nasceu a proposta de colocarmos em prática todas nossas discussões e finalmente fazer uma horta comunitária”, continua. “Marcamos uma reunião, descobrimos que muita gente morava na Vila Madalena e depois de muita discussão decidimos fazer um experimento aqui na Praça das Corujas.” Foi nessa bucólica faixa verde da zona oeste de São Paulo, com árvores gigantes e pequenas nascentes de água, que Cláudia me recebeu para um bate-papo. Fez questão de mostrar a parte que lhe cabe no verdadeiro latifúndio que é a horta das Corujas se comparada a outras iniciativas parecidas, mas bem mais humildes, como a minúscula horta dos Ciclistas, encravada na urbanidade sem limites da Avenida Paulista.

Na Corujas, Cláudia planta basicamente feijão, abóbora e milho, culturas rústicas, que não dão muito trabalho. “Assim não preciso vir todos os dias pra regar.” Mas pelo menos duas vezes por semana a jornalista veste seu chapéu de abas largas, calça galochas de plástico, bota uma enxadinha nas costas e pega o carro rumo à horta. Virou uma necessidade. “Assim tiro o cansaço de tudo o que fiz durante a semana”, reconhece. “Hoje em dia não tenho mais tanta necessidade de sair de São Paulo pra relaxar, ter contato com a natureza e fugir da correria, do trânsito, da superlotação. Mexendo com as plantas, que são seres vivos, a gente entra em outro tempo, bem diferente do tempo do computador. É maravilhoso, fora as amizades que fazemos por aqui. Você vai trabalhando na terra e conversando. Tudo é mais demorado, mais tranquilo, sem pressa. É outra relação.”

'Não tenho mais tanta necessidade de sair de SP pra relaxar, ter contato com a natureza e fugir da correria, do trânsito, da superlotação' (Foto: Ricardo Vicenzo/Divulgação)

Cláudia gosta de frisar que o cercadinho que delimita a horta não foi colocado pelos hortelões, mas pela prefeitura. Não querem passar a impressão de que estão se apropriando arbitrariamente de um pedaço da praça, que é de todos os paulistanos. Por isso, apesar do pequeno alambrado, a portinhola está sempre aberta. Qualquer um pode entrar a qualquer hora, sem pedir autorização para ninguém.

“Estamos construindo outra realidade, sem cadeados, sem câmeras de vigilância. E até agora não houve nenhum tipo de vandalismo”, reflete, ressaltando que os vizinhos deixam utensílios e ferramentas por ali e nunca tiveram problema de roubo. “Claro que alguém pode entrar aqui durante a noite e levar tudo, arrebentar os canteiros. Mas São Paulo já está muito viciada em coisas negativas. Aqui dá pra ter esperança.”

Utopias

O mesmo espírito tem permeado a horta da Pompeia. “As pessoas vêm deixando coisas na horta”, afirma Diná Ramos, que mora nas redondezas e ajudou na articulação dos mutirões. “Ninguém mexe em nada, ninguém pega nem leva nada. Só deixam. Ferramentas, regadores, as coisas simplesmente aparecem.” A união dos moradores ao redor do pequeno jardim revitalizado tem sido tão intensa que neste último Carnaval nasceu o bloco da horta, que reuniu umas 20 pessoas fantasiadas de espantalho e “horteiros” – neologismo que mistura as palavras hortelões e arteiros.

De acordo com Diná, um dos efeitos colaterais que estão surgindo com a evolução da horta é o envolvimento político da vizinhança. A ideia de revitalizar a pracinha abandonada já havia surgido dentro de um grupo formado para discutir os rumos do bairro, que tem sofrido um forte processo de verticalização. Reunidos na horta, porém, os moradores começaram a pensar mais sobre o entorno que desejam habitar – e agir para transformá-lo.

“Há pessoas se envolvendo no Conselho de Desenvolvimento Sustentável da Subprefeitura da Lapa, em discussões sobre a reforma do Plano Diretor, sobre a elaboração do Plano de Bairro, gente se articulando para realizar intervenções urbanas”, afirma Diná, que não esperava tanto comprometimento das pessoas quando lançaram a ideia da horta. “Tínhamos uma utopia que passava por isso, mas a realidade acabou se tornando melhor do que imaginávamos.”

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