Ponto de encontro de artistas corre risco de demolição com projeto Nova Luz em SP

Mapa da prefeitura situa loja de instrumentos musicais Contemporânea entre imóveis previstos para desapropriações. Criador da marca é conhecido como 'pai das escolas de samba'

Para Sérgio Quariglia, dono da loja Contemporânea, não faz sentido demolir construções íntegras com a desculpa de revitalizar o bairro (Foto: CDL/Divulgação)

São Paulo –  A antiga oficina de instrumentos musicais e atual sede da loja Contemporânea foi palco de shows quase particulares. Passaram por ali artistas como Elis Regina, Beth Carvalho, Nelson Cavaquinho, Adoniran Barbosa, Clara Nunes e Martinho da Vila. Esse marco, na região central de São Paulo, pode desaparecer.

Aberto há 63 anos, o estabelecimento pode ser removido do mapa, apesar de o prédio ter sido reformado em 2002 e estar em bom estado. O local consta entre os imóveis que serão demolidos para a implantação de empreendimentos do projeto Nova Luz.

Aos sábados, a Contemporânea também é sede da roda de samba frequentada por artistas conhecidos em nível nacional e regional há 38 anos. Em todo o bairro onde fica a loja, a prefeitura de São Paulo pretende realizar intervenções urbanísticas a partir do primeiro semestre de 2012. O principal argumento para a ação é a degradação do bairro, estigmatizado sob a alcunha de “cracolândia”, porque parte das ruas da região convive com concentração de usuários de drogas.

Desde que foi divulgada em dezembro de 2010, a iniciativa do poder público municipal recebe críticas de moradores e lojistas por deixar de lado abordagens de saúde pública para lidar com o problema das drogas e por usar o modelo de concessão urbanística, que permite a empresas particulares promoverem desapropriações. A medida prevê intervenções com desapropriações e demolições de até 60% das construções de 45 quadras do bairro de Santa Ifigênia e Luz, na área delimitada pela rua Mauá e pelas avenidas Ipiranga, São João, Duque de Caxias e Cásper Líbero.

Quando foi criada em 1948, por Miguel Fasanelli, a Contemporânea era uma oficina de instrumentos musicais. Ao longo dos anos, transformou-se em fábrica e loja de instrumentos. Em 1973, a paixão de Fasanelli pelo samba levou à criação da roda de samba que até hoje atrai centenas de pessoas. “Os próprios guias trazem turistas que vêm à região para participar de nossa roda de samba”, explica Sérgio Guariglia, sobrinho do artesão e um dos proprietários do lugar.

Miguel ficou conhecido como “pai das escolas de samba” e foi homenageado por uma como “Sambista Imortal”. Seu amor pelo gênero musical levou-o a viver, durante algum tempo, na ponte-aérea Rio-São Paulo. “Numa semana ele ia para lá para encontrar com os sambistas cariocas; na outra, eles vinham para cá. Ele trouxe os cordões carnavalescos do Rio para a capital paulista”, ensina Guariglia. “Vinha Jamelão, Zeca Pagodinho, Jair Rodrigues.” Miguel criava, a pedido dos sambistas, instrumentos personalizados e mais adequados a cada tipo de samba.

Nas paredes no fundo da loja estão centenas de fotos de personalidades e caricaturas feitas pelo próprio Miguel, que morreu em 2009. “De certa forma, ainda bem que ele não está aqui para ver esse projeto Nova Luz”, confessa o sobrinho. “Ele não suportaria ver a paixão da vida dele ser destruída. Morreria”, indigna-se.

Guariglia diz não entender porque um local considerado marco cultural da cidade será retirado. Miguel e os sobrinhos reformaram a loja em 2002. “É um crime o que estão propondo”, diz. “Nunca vi revitalização que destrói construções íntegras como a que o prefeito (Gilberto Kassab) quer fazer.”  Ele lembra inclusive da loja ser visitada por Kassab e o ex-subprefeito da região da Sé, Andreas Matarazzo. “Eles tiraram foto aqui, sentados na loja.”

A casa também deu início ao samba de vitrine que culminou com a criação da rua do samba na rua General Osório. Mais tarde, foi transferida para o vale da Anhangabaú por Kassab, mas não sobreviveu fora do contexto local.

Fotos Contemporânea

Outro orgulho dos donos é exportar instrumentos musicais para dezenas de países. Na lista estão Argentina, Alemanha, Estados Unidos, Inglaterra, China e Dubai. “De acordo com revistas da área, fomos eleitos pela oitava vez como a melhor fabricante de instrumentos de percussão do Brasil e a marca mais lembrada”, informa.

Sair de casa

Apesar do lançamento do projeto consolidado do Nova Luz, em 11 de agosto, pelo próprio prefeito, Guariglia tem esperança na desistência de implementação das demolições. “Queremos a revitalização. Só não dá para aceitar sair do próprio imóvel para outro entrar porque a prefeitura quer”, afirma.

Para o herdeiro da paixão de Fasanelli pela música, não há possibilidade de trocar de sede. “Não temos um plano B, porque essa é a nossa casa. É a nossa cara.” Depois da instalação da loja, ao lado do conservatório musical do estado, diversas lojas de instrumentos musicais se estabeleceram na área, que acabou se transformando em referência na cidade.

“Nossa luta é para a Contemporânea chegar aos 100 anos”. Além do braço cultural,  os sobrinhos do imortal do samba programam-se para uma nova empreitada, agora na área social. “Estamos iniciando o projeto Filhos da Luz”, antecipa Guariglia à Rede Brasil Atual. O projeto é uma parceria da marca com a banda Olodum para oferecer dança, música e atendimento psicológico a crianças carentes.

História partida

De acordo com mapa do projeto Nova Luz, publicado pela própria prefeitura, as áreas previstas para desapropriações, demolições e intervenções podem incluir quarteirões inteiros, estabelecimentos comerciais tradicionais – como o Bar Léo e a Casa Aurora – e imóveis com menos de dois anos de construção ou reforma.

Para a presidenta da Associação Amoaluz, Paula Ribas, integrante do conselho gestor da zona especial de interesse social (Zeis), apesar de o mapa de imóveis constar no projeto da prefeitura, ele ainda não é definitivo. Ela explica que o material entregue como consolidado não foi aprovado pelo conselho gestor, que não teve acesso ao detalhamento do  Nova Luz. “Estamos trabalhando no conselho para minimizar impactos, não parar a vida social do bairro e incluir pautas sociais”, diz Paula.

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