Cidade paulista vota lei que abre brecha para privatizar água

Atibaia pode adotar PPPs para serviços de saneamento e abastecimento. Grandes corporações avançam com voracidade no setor, de Rondônia ao Paraná

Atibaia (SP) – A Câmara de Vereadores de Atibaia (SP), a 70 quilômetros da capital, pode votar nesta segunda-feira (5), projeto de lei que abre espaço para a privatização de obras e para a prestação de serviços de abastecimento de água e saneamento. Segundo os críticos da proposta, ainda não foram oferecidas respostas consistentes e definitivas sobre os efeitos da eventual adoção de PPPs para obras no setor.

Em maio deste ano, o Saneamento Ambiental de Atibaia (SAAE) começou a debater internamente uma proposta de mudança no modelo de gestão do saneamento básico. Tomando como exemplo o padrão adotado na cidade de Guaratinguetá (SP), no Vale do Paraíba, o poder público atibaiense busca a iniciativa privada para angariar recursos financeiros ao setor. A justificativa é que, sozinho, não conseguirá alcançar metas de saneamento básico previstas em lei federal (lei 1.445 de 2007) que diz, por exemplo, que os serviços devem ser universalizados.

Na proposta, a prefeitura tenta que a Câmara de Atibaia aprove projeto de alteração de regime jurídico do SAAE – de autarquia para empresa pública – o que possibilitaria, como em Guaratinguetá, a contratação de uma Parceria Público Privada (PPP). O esforço da prefeitura é tamanho que, em meados de julho, antes de qualquer chamado para audiências públicas e sem oferecer prazo para a realização de estudos minuciosos e debates amplos, o vice-prefeito em exercício, Ricardo dos Santos Antonio (PT), solicitou sessão extraordinária no Legislativo, em pleno recesso parlamentar, para votar a proposta. A sessão foi recusada pelo presidente da Câmara, vereador Emil Ono (PTB).

No caso da alteração de regime, embora a direção da empresa afirme que nada mudaria, trabalhadores do SAAE consideram que a modificação altera as relações de trabalho, ameaçando empregos e direitos adquiridos, o que preocupa funcionários e consumidores. Por exemplo, existe a súmula 390, do Tribunal Superior do Trabalho (TST) que prevê a perda da estabilidade dos funcionários concursados se houver a mudança para regime de empresa pública. O risco é sentido especialmente pelos servidores de carreira, há mais tempo na autarquia.

Sobre as relações de consumo, a mudança significaria perda de isenção de impostos, como PIS e Cofins, ligados à seguridade social. Não há garantias de que os custos adicionais não seriam repassados para as tarifas cobradas da população.

Conturbado

A privatização do abastecimento de água e esgoto é criticada por envolver um setor estratégico e a garantia de um direito humano – além de ter consequências do ponto de vista da saúde. Mais grave é que em cidades que adotaram esse tipo de regime para a concessão dos serviços, os problemas não tardaram.

Em agosto de 2011, um mês após a privatização em Uruguaiana (RS), a 650 quilômetros de Porto Alegre, os moradores surpreenderam-se. A maioria das contas sofreu aumento, contrariando as promessas de redução da tarifa, feitas pela prefeitura e a empresa Foz do Brasil, braço do Grupo Odebrecht, que assumiu os serviços. As reclamações dos usuários foram parar na imprensa local. Um morador, por exemplo, consumiu um único metro cúbico de água no mês e teve que pagar R$ 33.

Antes, no mês de fevereiro, Santa Gertrudes (SP), a 190 quilômetros de São Paulo, passou por situação semelhante. O reajuste aplicado nas contas de água após a privatização do serviço causou protestos entre os moradores. Houve casos em que o aumento chegou a 700%. Além dos aumentos abusivos nos preços, outra coincidência: a empresa concessionária também é a Foz do Brasil.

A opção pela privatização no setor de abastecimento de água pode levar o consumidor a ter pela frente contas mais altas. A avaliação é de organizações sociais nacionais e internacionais que participaram, em julho, de seminário que debateu como a população pode se organizar para impedir a venda das empresas.

De acordo com representantes do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), 90% da rede de distribuição de água no país são controlados por empresas públicas, com uma cobertura de quase 100% das grandes e médias cidades. Para o MAB, um negócio que não requer grandes investimentos (já que conta com estruturas prontas, criadas com dinheiro público) e movimenta anualmente cerca de R$ 120 bilhões – mais que todo o setor elétrico – desperta o interesse da iniciativa privada.

A elevação dos custos ao consumidor ocorreria pela própria lógica do sistema privado, que adota um modelo de reajuste estabelecido em preços internacionais ou com outras formas de indexação – a exemplo do que ocorre a concessões de outros serviços, como rodovias, distribuição de energia elétrica ou telefonia. Representantes das organizações preveem um aumento imediato nos preços, além de uma diminuição dos investimentos no setor.

Os participantes do seminário denunciaram práticas ilícitas em alguns estados do país. Em Rondônia, na região norte, representantes do Sindicato dos Trabalhadores das Empresas de Água e Energia afirmam que empresários chegaram a assediar vereadores para facilitar a aprovação da privatização do serviço.

A entidade também denuncia que, em alguns municípios, as prefeituras têm desconsiderado processos legais, como a licitação para a concessão do sistema de abastecimento, exemplo ocorrido na cidade de Ariquemes (RO), a 200 quilômetros de Porto Velho. Contra a privatização, os sindicalistas avaliam que as empresas privadas investirão menos na ampliação da rede e, principalmente, em saneamento.

Esgoto e água

A Companhia de Serviço de Água, Esgoto e Resíduos de Guaratinguetá (SAEG) é apontada pela atual administração atibaiense como exemplo de solução para atingir metas da lei federal de saneamento, bem como um instrumento capaz de sanar finanças. Em Guaratinguetá, o argumento para a mudança e a entrada do setor privado na gestão de saneamento era que o poder público não teria condições econômico-financeiras de manter a instituição após a sanção da lei federal em 2007.

Em 2008, o Serviço Autônomo de Água, Esgoto e Resíduos de Guaratinguetá (SAAEG) mudou o regime jurídico – de autarquia para empresa de economia mista – tornou-se SAEG e recorreu a uma PPP. O Grupo Queiroz Galvão, detentor da Companhia de Águas do Brasil (CAB Ambiental) representaria, em tese, a solução dos problemas da antiga autarquia. Para os moradores, não é o que se vê.

No último dia 1º de junho, o prefeito de Guaratinguetá, Junior Filippo (DEM) encaminhou à Câmara Municipal do município um projeto de lei solicitando autorização legislativa para a concessão da água na cidade. Trocando em miúdos, fazer da água uma mercadoria a ser vendida à população sob tutela da iniciativa privada.

A alegação era de que a capacidade de investimento do município é baixa, por isso a decisão de estreitar relações com o setor privado. No dia 30 de junho, em sessão ordinária, os vereadores votaram e aprovaram o texto, em regime de urgência, por oito votos a três.

Na contramão

Enquanto tentáculos de grandes corporações vão expandindo atividades na área de água e esgoto pelo país, em países europeus, com até mais tradição de privatizações do que o Brasil, vão em sentido contrário. O doutorando da Universidade Estadual Paulista (Unesp) Juscelino Eudâmidas diz que, de acordo com pesquisas internacionais, até 2015, cerca de 60% da capacidade de abastecimento da América Latina estará privatizada. Contudo, ele destaca que, nos países ricos, onde a ideia da privatização do setor surgiu, os governos estão voltando atrás.

“O Estado francês, onde surgiram as primeiras experiências de concessão do sistema de distribuição de água, está reestatizando todo o serviço. Eles viram que a qualidade do serviço e da água caíram, os preços subiram exorbitantemente e o serviço não foi universalizado”, diz Eudâmidas.

Representantes do Movimento dos Atingidos Pelas Barragens destacam que a Itália, por meio de referendo, decidiu, em junho passado, que o sistema de água deve ser gerido por empresas públicas.

A CAB Ambiental é outro elo entre as propostas de Atibaia e Guaratinguetá, já que a empresa foi a responsável por desenhar o projeto de PPP para o SAAE de Atibaia. Mas nem tudo funciona bem para os locais onde a empresa atua.

Em julho, a Justiça de Paranaguá (PR), a 91 quilômetros a leste de Curitiba, determinou a rescisão do contrato entre as empresas CAB Águas de Paranaguá S/A, sub-concessionária que administra o serviço de abastecimento e saneamento na cidade, a Companhia de Água e Esgotos de Paranaguá (Cagepar) e o município.

A decisão, de caráter liminar, atende ação civil pública apresentada em maio deste ano pelo Ministério Público do Paraná. A Promotoria de Justiça da comarca sustenta que a empresa deixou de cumprir diversas obrigações contratuais, resultando em grave prejuízo financeiro aos cofres públicos. Há ainda reclamações relativas à má qualidade do serviço oferecido à população e ao desrespeito à legislação.

O juiz que acatou os argumentos do MP impôs prazo de oito meses para que a administração municipal volte a assumir o serviço, hoje prestado pelas empresas. Em caso de descumprimento, a prefeitura deverá pagar multa diária de R$ 10 mil.

Os promotores de Justiça apontaram diversas ilegalidades, como o não pagamento de encargos aos cofres municipais e o descumprimento recorrente de várias cláusulas contratuais, que implicaram na não realização de investimentos em melhoria do serviço e, consequentemente, prejuízo direto para a população.

Na decisão, o juiz chega a transcrever trecho da medida do MP-PR, que resume a situação: “Aproximadamente 45 anos após a assinatura do contrato de concessão de exploração dos serviços de água e esgoto e, após 14 anos da assinatura do contrato de subconcessão destes serviços, nem a Cagepar e nem a Águas do Paraná executaram satisfatoriamente, nem o Município exigiu tal implemento”.

O juiz também destaca: “Frise-se, após 14 anos do contrato de sub-concessão, não há sequer 5% de rede reparadora de esgoto no município de Paranaguá”. Por contrato, a empresa deveria ter implantado 85% do sistema de atendimento de esgoto até 2003.
Além disso, a Águas de Paranaguá havia se comprometido a construir reservatórios com capacidade de 17mil m3 até 2001, sendo que, até 2005, instalou apenas um reservatório, com capacidade de 1 mil m³.

Em virtude disso e de outras situações, em março deste ano, quando houve uma enchente na região, os moradores da cidade ficaram sem abastecimento de água por vários dias. “As fortes chuvas do início do ano nos deram a prova material de que o sistema era de fato frágil e que a população corria risco”, afirmam os promotores de Justiça autores da ação.

Eles estimam que, no total, o descumprimento de cláusulas contratuais que implicavam em investimentos na rede de água e esgoto e o não pagamento de encargos resultaram em um rombo de cerca de R$ 60 milhões aos cofres públicos.

Em comum com Atibaia e Guaratinguetá, a cidade de Paranaguá tem a mesma empresa como a parte privada – já instalada ou pretendida – dos serviços de água e esgoto: a CAB Águas de Paranaguá, empresa que a  Justiça determinou a rescisão de contrato no Paraná, é um dos muitos braços da CAB Ambiental e do Grupo Galvão estendidos Brasil afora.

Fonte: Nota de Rodapé