Violência do Estado

Mulher esterilizada por ordem judicial pode não ser fato isolado

'Caso revela muitas 'Janainas' pelo Brasil todo', afirmou a presidenta do Conselho Regional de Serviço Social, sobre episódio da laqueadura de uma mulher no interior de São Paulo

Arquivo EBC

Em vez de mandar esterilizar, Estado poderia ter sugerido outras medidas não irreversíveis e muito menos violentas, como o uso de DIU

São Paulo – Quais os limites do Estado diante das garantias constitucionais do cidadão? A procura pela resposta esteve no centro do debate promovido pela seção paulista da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-SP), realizado nesta quinta-feira (26), ainda na esteira da esterilização de uma mulher em Mococa, interior do estado, ocorrida por ordem judicial. Desde que foi revelado há pouco mais de 15 dias por Oscar Vilhena Vieira,professor de Direito Constitucional da Fundação Getúlio Vargas (FGV), o caso tem despertado revolta em diferentes segmentos da sociedade.

A violência cometida contra Janaína Aparecida Quirino, porém, não é um caso isolado no país, pelo contrário, conforme denunciou a presidenta do Conselho Regional de Serviço Social do Estado de São Paulo (Cress-SP), Kelly Rodrigues Melatti. “O caso revela muitas ‘Janainas’ pelo Brasil todo. O caso expressa uma visão de mundo, que se sustenta numa sociedade dividida por classe social, pelo racismo, machismo e a ‘lgbtfobia'”, afirmou.

Após vir à tona o caso de Janaína Quirino, outra mulher, novamente em Mococa, também disse ter passado por cirurgia de esterilização, em processo envolvendo o mesmo juiz e promotor.

Para Kelly Melatti, o tema, de fundo, deve ser a desigualdade de gênero e de classe existente numa sociedade em que uma elite perpetua seus privilégios. Segundo ela, a mudança constitucional que congelou os gastos públicos do governo federal por 20 anos terá como consequência a repetição de episódios como o da esterilização forçada espalhados pelo Brasil, efeito previsível do desmonte da rede de proteção social. “A perspectiva é que novas ‘Janainas’ aconteçam. Quantas ‘Janainas’ terão nos próximos 20 anos?”

A presidente do Conselho relacionou o caso de Mococa com a campanha “De quem é esse bebê?“, realizada em Belo Horizonte, em 2014, e que identificou 359 casos de mulheres na capital mineira que perderam a guarda dos filhos por serem usuárias de drogas, sem nem sequer terem a chance de se defender na Justiça.  “Isso é gravíssimo. Há uma ideia de proteção da criança, mas na verdade estamos falando de violação.”

Integrante do Núcleo Sexualidade e Gênero do Conselho Regional de Psicologia de São Paulo (CRP-SP), Flávia Roberta Eugenio afirmou não caber ao Estado qualquer ingerência na esfera íntima de uma pessoa, sobretudo uma mulher. “É evidente a naturalização do corpo feminino como um corpo público, como se qualquer um decidisse sobre o corpo da mulher. O caso da Janaina é mais um que já vimos acontecer. Quem trabalha na rede de atendimento, vê essas violações acontecerem com muita frequência”, atestou, enfatizando que essa perda de autonomia é ainda maior quando a mulher está grávida.

Por outro lado, Flavia Eugenio alertou que muitas vezes os profissionais da rede de assistência não têm condições de avaliar de maneira correta a situação, e agem apenas reproduzindo posturas e encaminhamentos, sem apoio e estrutura para o correto atendimento. “O Estado não cumpriu o seu dever de acompanhar com cuidado esse caso. Era uma família assistida de forma muito perversa, sendo vigiada para ser punida, com julgamentos e valores sociais pesadíssimos de como aquela mulher deveria agir”, criticou.

Consentimento

O fato de Janaína Aparecida Quirino ter ou não autorizado a sua esterilização é um dos aspectos nebulosos do processo. Autor do artigo que revelou o caso, Oscar Vilhena Vieira disse que um dos aspectos que lhe chamou atenção no processo, foi o próprio membro do Ministério Público confessar não ter clareza se Janaina queria ou não fazer a esterilização. E ainda assim, o promotor propôs que a laqueadura fosse feita mesmo contra o consentimento dela. “A peça do MP confessa que há dúvida, mas mesmo assim manda fazer!”, exclamou o professor da FGV. “Pessoas invisíveis têm seu corpo como objeto, à disposição das pessoas que exercem o poder.”

O significado de “consentir” foi o foco da análise de Lívia Maria Zago, professora na Rede de Educação Permanente em Bioética. “Não há consentimento sem informação”, explicou. Para ela, o caso envolvendo Janaina Quirino evidencia que não houve compreensão do que significa “consentir”, uma decisão derivada da liberdade humana. “O consentimento só é válido se livre e esclarecido.”

De acordo com Lívia Zago, ainda que ela tivesse consentido realizar a cirurgia de esterilização, poderia mudar de opinião a qualquer momento. “Essa confusão aparente é exercício de autonomia. O consentimento não é mera opinião, é vontade, e pode ser alterado a qualquer momento”, afirmou a professora da bioética, que também questionou o direito do médico de cumprir uma ordem judicial, ainda que ilegal.  

Dizendo saber que tocaria num ponto delicado, Lívia disse ser preciso “enfrentar” o problema da situação das crianças: Janaína Quirino teve oito filhos, sendo que três estão com o primeiro marido, outros três já foram adotados, uma filha está em abrigo, e o último bebê, nascido na mesma ocasião da cirurgia de laqueadura, está em processo de adoção. “É preciso falar sobre os direitos dessas crianças a terem uma vida boa, saudável”, ponderou. Para ela, é preciso haver políticas públicas que permitam as mulheres terem um planejamento familiar. “Temos que pensar nessas crianças jogadas ao léu.”

Prevenção

“Desde quando a mulher, por ser pobre, negra e ‘drogadita’ perde seus direitos fundamentais?”, questionou a coordenadora do Atendimento às Vítimas de Violência Sexual (Navis), no Hospital das Clínicas de São Paulo, Maria Ivete de Castro Boulos. Conhecida por sua atuação em defesa dos direitos da mulher, lamentou que o caso ocorrido em Mococa tenha obtido visibilidade após a esterilização já consumada, uma cirurgia que não pode ser desfeita.

“Estou indignada por estarmos trabalhando com a consequência. Falhamos na prevenção”, afirmou. Maria Ivete também criticou a atuação do médico ao realizar a cirurgia sem nunca ter visto a paciente. “Quem agora vai pedir desculpa para a Janaína? Ninguém. Tudo o que está escrito na lei é fantasia. Na hora que eles querem atingir o pobre, o negro, a lei é fantasia.”

Já Albertina Takiuti, coordenadora de Políticas Públicas para Mulheres do Estado de São Paulo, defendeu que outras opções contraceptivas poderiam ter sido oferecidas para Janaína Quirino e tantas outras mulheres, como é o caso do DIU, um método eficiente sem ser irreversível.

Albertina enfatizou que o Estado deveria ajudar mulheres em situação de vulnerabilidade e, se no caso de Janaína ela não tinha condições de criar os filhos, então também não teria para decidir sobre a esterilização. “Não é porque falta comida na mesa que vamos matar quem está com fome”, disse ela, citando frase de Dom Paulo Evaristo Arns.

Segundo a coordenadora, o país tem três vezes mais cirurgias de esterilização do que países desenvolvidos. “Essas ameaças não são por acaso. Estamos vivendo isto por todo o Brasil”, sentenciou.

Consequências

Um dos anfitriões do debate, o coordenador da Comissão Permanente de Direitos Humanos da OAB-SP, Martim de Almeida Sampaio, disse que a Constituição brasileira está sob ataque desde o dia seguinte da sua promulgação. “Estamos vendo a repetição de que os grupos vulneráveis seguem na mira do Estado brasileiro. A única política pública que o Estado oferece para quem é negro e pobre, é cadeia e bala”, afirmou.

Assim como outros participantes do encontro, ele também criticou o congelamento dos gastos públicos do governo federal por 20 anos, uma medida que, disse, tem como objetivo pagar a dívida pública. “Estamos trocando ser humano pelo mercado.”

Sobre o caso de Mococa, Martim Sampaio acredita que haverá consequências para o juiz e o promotor responsáveis pela esterilização forçada de Janaina Quirino. A OAB-SP já entrou com representações no Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e no Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP). Além dessas duas representações, o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) também solicitou a investigação das corregedorias do TJ-SP e do Ministério Público estadual.

Para ele, se tais órgãos não tomarem alguma atitude, a situação será ainda mais grave. “Será um cenário muito ruim de impunidade para a sociedade. Foi uma indignação geral, vai sinalizar que os juízes estão impunes.”

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