Descriminalização ou legalização?

Proibição às drogas é ‘subsídio’ ao crime organizado, diz analista

'Precisamos discutir a legalização, e o Brasil está muito longe desse debate. É isso que eu queria que o ministro Raul Jungmann defendesse, mas ele não defende', diz Gabriel Elias, do IBCCRIM

Jose Lucena/Futura Press/Folhapress

Sem debate e na contramão de outros países, Brasil trata o tema apenas como questão de segurança e repressão

São Paulo – Na semana passada, o ministro da Segurança Pública, Raul Jungmann, afirmou ter pedido à ministra Cármen Lúcia, presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), para pautar a retomada do julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 635.659, que trata da descriminalização de usuários de drogas. O processo está interrompido há mais de dois anos, por pedido de vista do ministro Teori Zavascki. Com a morte de Zavascki, em janeiro de 2017, seu substituto, ministro Alexandre de Moraes, “herdou” o voto. Para a ministra Cármen colocar em pauta, é preciso que, antes, Moraes libere seu voto. 

Para o  cientista político Gabriel Santos Elias, coordenador de Relações Institucionais da Plataforma Brasileira de Política de Drogas, do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM), embora a discussão e a própria descriminalização das drogas sejam importantes, só essas medidas não resolverão o problema.

“A descriminalização foca só o consumo. Só o usuário deixaria de ser preso e é isso o que está em pauta no STF. A descriminalização é importante, especialmente para garantir o direito à saúde dos usuários de drogas. Mas, para tirar pessoas das prisões e diminuir a força das organizações criminosas, precisamos discutir a legalização, e o Brasil está muito longe desse debate”, diz. “É isso que eu queria que o ministro Jungmann defendesse, mas ele não está defendendo.”

Elias aponta problemas no discurso de Raul Jungmann, para quem é importante que se estabeleça uma quantidade para que o usuário não seja enquadrado como traficante, o que, segundo o ministro, reduziria o encarceramento de pequenos infratores.

De acordo com Gabriel Elias, “se quiser resolver o problema, precisamos tirar o ‘subsídio’ que é dado às organizações criminosas, que é a própria proibição”. Em outras palavras, para enfrentar essas organizações, o Brasil precisa mudar a legislação não só em relação ao consumo, mas principalmente no que diz respeito ao comércio e produção de drogas. “O Brasil precisa discutir seriamente esse tema, como outros países estão fazendo.”

Segundo reportagem do jornal Folha de S. Paulo de janeiro, após quatro anos em que a Lei da Maconha vigora no Uruguai, crimes relacionados ao narcotráfico diminuíram em 18%.

Ônus da prova

De acordo com Elias, a legislação (Código Penal) brasileira prevê que o ônus da prova é de quem acusa. “Mas hoje acontece o contrário. A pessoa que é pega com maconha tem de provar que não está traficando, que é para consumo. Por isso se prende tanto o usuário como o traficante. Se garantirmos o que está na legislação, muitos usuários que não deveriam estar presos por tráfico sairiam dos presídios.”

A Lei de Drogas (11.343/2006), que tornou mais severa a punição para tráfico (de três para cinco anos de detenção), é considerada a principal causa da explosão do número de presos por conta desse crime, de cerca de 35 mil em 2005 para 175 mil em 2014. O Brasil tem aproximadamente 700 mil presidiários.

Uruguai e Portugal são atualmente considerados exemplos de países que tratam a questão sob um ponto de vista civilizado. No Brasil, o máximo a que se chegou foi a um projeto de lei do deputado Jean Wyllys (Psol-RJ), considerado bastante avançado, mas que está parado na Câmara dos Deputados. 

No STF, o julgamento está em 3 votos a 0 a favor da descriminalização, com os votos do relator, Gilmar Mendes, e dos ministros Edson Fachin e Luís Roberto Barroso.  Gilmar Mendes foi o mais liberal em seu posicionamento. Ele votou pela descriminalização das drogas em geral. Já Fachin e Barroso restringiram o voto somente à maconha.

O especialista do IBCCRIM critica ainda outro ponto da abordagem de Jungmann, sobre a diferenciação objetiva entre usuário e traficante, baseada em quantidades. O ministro da Segurança defende a necessidade de se estabelecer quantidades que permitam ao juiz diferenciar traficante de usuário.

No julgamento interrompido do STF, o ministro Barroso propôs 25 gramas de maconha como quantidade máxima a ser portada pelo usuário. Algumas gramas a mais o transformariam em traficante. “Não pode ser assim. Se a finalidade é de lucro, de distribuição da substância, deve ser considerada tráfico; se a finalidade é consumo pessoal, não importa a quantidade, a pessoa deve ser considerada usuária. Senão estaremos criminalizando pessoas por causa de um critério arbitrário colocado por um juiz”, diz Elias.

Com essa “diferenciação objetiva, baseada em quantidades”, as pessoas continuarão a ser criminalizadas arbitrariamente  e, mais do que isso, de acordo com sua condição social e sua cor, avalia o cientista político. “Por mais que se fixem quantidades objetivas, essa definição vai ser aplicada desigualmente – segundo a percepção do juiz a respeito do caso, o que envolve preconceitos sociais”, acrescenta.

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