Vala clandestina de Perus

Identificação de Dimas Casemiro põe fim a uma espera de 47 anos

Amigo e companheiro de luta do agora ex-desaparecido político, Ivan Seixas recorda sua amizade com Dimas e a relação criada com o filho, Fabiano. 'Feliz por ele poder fazer o enterro do pai', diz

Danilo Ramos/RBA

Imagens de esperança: as fotos dos desaparecidos políticos no laboratório criado em 2014 para investigar as ossadas

– Eu não conheci meu pai. Queria saber se alguém conheceu ele.

– Quem era teu pai?

Dimas Antônio Casemiro.

“Eu gelei”, recorda Ivan Seixas, “capturado” em 1971, aos 16 anos, junto com seu próprio pai, Joaquim Alencar de Seixas.

– Cara, você não faz ideia do que está me falando. Ele foi meu amigo, meu companheiro de organização.

– Você conhecia meu pai? Dá pra você me contar como ele era?

“E então fui contando como ele era, se ele ria, se não ria, o que ele comia, o que não comia, como era a personalidade dele. E o filho ali ‘bebendo’ o que eu contava”, diz Ivan Seixas, lembrando aquele dia de 1990, quando conheceu o jovem Fabiano Casemiro, durante audiência da CPI de Perus. A investigação sobre os crimes da ditadura havia sido recém criada na Câmara Municipal de São Paulo, após a escavação que revelou para o país a vala clandestina do cemitério de Perus e suas mais de mil ossadas.

Fabiano tinha apenas 3 anos quando o pai morreu assassinado numa emboscada ao chegar em casa, em São Paulo. Foi cercado e fuzilado. A emboscada fora planejada pelo agente infiltrado Gilberto Faria Lima, apelido Zorro, que morava junto com Dimas.

Ivan Seixas estava em casa ontem (19), em Foz do Iguaçu (PR), quando no meio da tarde o telefone tocou. Era Eugênia Gonzaga, procuradora da República e presidenta da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos.

– Olha Ivan, tenho uma boa notícia.

A notícia vinha de longe e era aguardada há 47 anos. Em um laboratório de Sarajevo, na Bósnia e Herzegovina, especializado em identificação mitocondrial (identificação pelo osso) de DNA, foi confirmado no último dia 16, o “vínculo genético” entre os restos mortais enviados em setembro de 2017 e as amostras sanguíneas dos familiares de Dimas.  

“Fiquei superfeliz, comemoramos muito. Sempre tive uma relação especial com o Fabiano por contar como era o pai dele. Ele deve estar numa emoção sem tamanho. É um momento muito especial. Não só por ser um desaparecido político, mas por ser um amigo e companheiro”, afirma Ivan Seixas.

Quando os esforços para a identificação das ossadas de Perus foram retomados, em 2014, ele reconhece não ter tido muita confiança no sucesso da missão. Desde o primeiro momento, os peritos faziam ponderações sobre as diminutas possibilidades em função do estado precário das ossadas. Mas para Ivan Seixas, esse não era o principal problema.

RBA
Ivan Seixas com a foto do pai em ato no DOI-Codi: os dois foram torturados juntos

“Do ponto de vista técnico, eu achava que era possível. Do ponto de vista político, não. Eu achava que iriam sacanear e não tocar pra frente. Têm muitos interesses contrários, sempre suspeitei muito da Polícia Federal, sempre suspeitei muito desse governo golpista. Achei que não iriamos ter avanço nenhum. E pra minha surpresa, valeu a técnica, foi reconhecido.”

Na manhã desta terça (20), Ivan escreveu um breve relato numa rede social sobre sua relação com Dimas, agora, ex-desaparecido político.

“Conheci Dimas quando ele ainda usava o nome de guerra de Fabiano, que descobri depois ser o nome de seu filho. Certo dia, ele me ensinava como operar um mimeógrafo e manuseou uma resma de papel com a intimidade que só um operário gráfico saberia fazer. Sua profissão falou mais alto e ele mostrou toda a habilidade possível. Tanto que Henrique (Devanir José de Carvalho) o apelidou de Rei do Papel e ele passou a usar o nome de Rei.

Sempre sorridente e gentil com todas as pessoas ao seu redor, mesmo que não fossem seus amigos, Dimas era um grande amigo e companheiro. Operário gráfico (tipógrafo) de profissão, filho de camponeses, natural de Votuporanga, extremo oeste do estado de São Paulo, tinha seu irmão Dênis também na luta. Casado com Maria Helena, sua namorada de adolescência, era pai de Fabiano, por quem tinha uma paixão absolutamente explícita e orgulhosa.

Participei de várias ações armadas junto com Dimas. Sempre foi firme e sempre solidário com os demais companheiros. Se fosse preciso colocaria seu corpo para proteger quem estivesse com ele. E sempre foi respeitoso com quem não era militante”, escreveu Ivan Seixas.

Ambos atuaram no Movimento Revolucionário Tiradentes (MRT), uma organização clandestina de luta armada contra a ditadura. Ambos foram presos no mesmo ano, 1971. Aliás, “preso” não é uma definição correta segundo Ivan Seixas. Por não reconhecer “autoridade moral nem legal” da ditadura, ele prefere dizer que o regime “capturava” seus opositores.

Ao receber a notícia da identificação de seu amigo e companheiro de lutas, Ivan lembrou-se do enterro de seu próprio pai, Joaquim Alencar de Seixas. Os dois foram torturados juntos no DOI-Codi de São Paulo. Ele no pau de arara, seu pai na cadeira do dragão, uma cadeira com fios ligados a diversas partes do corpo para dar choques. Joaquim morreu na tortura e Ivan ouviu tudo.

“Quando eu fiz o traslado dos restos mortais do meu pai para enterrar em São Paulo, muitos anos depois da morte dele, que eu vi ele morto, eu fiquei muito emocionado e lembrei de como as famílias dos desaparecidos devem se sentir, por saber que morreu, mas não ter o corpo. Ontem ficou muito evidente pra mim a mesma coisa, em como o Fabiano deve estar se sentindo, e o meu empenho em fazer essa localização foi muito em relação ao Fabiano. Fiquei muito emocionado e muito feliz por poder fazer essa entrega para ele fazer o enterro do pai.”

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