Situação de emergência

Com militares à frente, ações na acolhida de venezuelanos têm acertos e problemas

Com mais de um ano de atraso, governo Temer anuncia medidas para organizar o fluxo migratório no norte do país. Para a presidenta do CNDH, desdobramento das ações merece atenção

UNHCR/Boris Heger/Nações Unidas

PF registrou, até o final de 2017, mais de 22 mil pedidos de refúgio e 8 mil pedidos de residência de venezuelanos

São Paulo – O que começou lentamente no ano de 2016, foi se intensificando de modo acelerado ao longo de 2017 até criar uma situação de emergência nos estados da região Norte, principalmente Roraima. Fugindo da crise econômica e política da Venezuela, milhares de cidadãos do país vizinho decidiram buscar abrigo no Brasil. Com mais de um ano de atraso, o governo Temer anunciou, no último dia 16, uma série de medidas para organizar o fluxo. A iniciativa ocorre após uma série de alertas feitos por organizações de direitos humanos. E enquanto algumas ações são bem vindas, outras merecem atenção e alguma preocupação, segundo a presidenta do Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH), Fabiana Severo.

Ela lembra que depois de 10 dias de missão em cidades no Norte  Belém e Santarém (Pará), Manaus (Amazonas), Boa Vista e Pacaraima (Roraima) –, o CNDH publicou uma recomendação emergencial com diretrizes sobre os direitos e a organização do fluxo de pessoas vindas da Venezuela. No documento do último dia 31 de janeiro, o conselho sugeria à presidência da República a instalação urgente de um Gabinete Emergencial de Gestão Migratória, composto pelo governo federal, governos estaduais e municipais envolvidos na acolhida dos venezuelanos; recomendava a implementação de um “plano de interiorização” para ajudar os migrantes que querem ir para outros estados do país; sugeria a adoção de protocolos de atendimento diferenciado à população indígena migrante, entre outras recomendações.

Coincidência ou não, duas semanas depois o governo finalmente decidiu agir e anunciou uma medida provisória e dois decretos com uma série de iniciativas para organizar o fluxo e apoiar os milhares de venezuelanos que deixam suas casas em direção aos estados do norte do Brasil, principalmente Roraima. Segundo dados da Polícia Federal, até o final de 2017 foram registrados 22 mil pedidos de refúgio e 8 mil pedidos de residência. O perfil heterogêneo inclui solicitantes de refúgio, migrantes econômicos, indígenas e não-indígenas, incluindo crianças e adolescentes, mulheres e pessoas idosas.

“A situação demanda uma atuação emergencial e um olhar sensível por todos os governos, principalmente o federal”, explica Fabiana Severo, enfatizando que a gravidade da situação a transforma numa questão nacional que não pode ficar sob responsabilidade apenas dos governos locais.

Na análise da presidenta do CNDH, algumas ações anunciadas pelo governo Temer estão em concordância com as sugestões apresentadas pelo colegiado, como a criação de um comitê federal de atendimento emergencial, o apoio à interiorização dos venezuelanos e a melhoria na estrutura de acolhimento dos migrantes.

Olhar militar

Por outro lado, Fabiana alerta para algumas questões que merecem atenção. Como exemplo, cita o “olhar militar”, representado pelo papel das Forças Armadas na liderança das iniciativas anunciadas pelo governo. A presidenta do CNDH pondera que até o ano passado, quando entrou em vigor a nova lei migratória em substituição ao antigo Estatuto do Estrangeiro (de 1980, elaborado ainda durante a ditadura civil-militar), a questão migratória sempre foi tratada como um tema de segurança nacional, um paradigma alterado com a nova lei.

“Em tese o governo está alinhado com a nova lei, mas nos chama a atenção o fato de as Forças Armadas estarem na linha de frente das ações. É importante que não haja descontinuidade na acolhida, escondendo na prática a intenção de barrar pessoas”, analisa Fabiana, ponderando que a superação do parâmetro anterior é ainda muito recente.

“Não se pode enxergar o estrangeiro como ameaça à segurança nacional. Qualquer abordagem desse governo nesse sentido pode não ser a mais adequada. A acolhida humanitária não é só o ingresso, é também a integração. A ideia de que o imigrante é uma ameaça é muito ultrapassada.” Como entre as ações anunciadas pelo governo está o “fortalecimento do controle de fronteiras”, Fabiana avalia que é preciso acompanhar o que de fato será feito. “O retorno das pessoas que pedem ajuda e acolhida pode representar um risco à vida e à liberdade”, afirma.

A presidenta do CNDH também demonstra preocupação com o decreto que reconhece a situação de vulnerabilidade dos venezuelanos, mas tece considerações a respeito da situação política do país vizinho.

Para ela, as recomendações emergenciais não pretendem resolver o “problema de fundo”, ou seja, a crise política e econômica da Venezuela, mas sim dar a devida acolhida humanitária para milhares de pessoas em busca de ajuda. A preocupação com possíveis interpretações políticas da situação deve-se também ao discurso do próprio Temer. Em visita recente a Roraima, ele citou “refugiados venezuelanos”.

Fabiana explica que o instituto do refúgio normalmente é aplicado em casos de perseguição política, religiosa ou étnica. No caso da Venezuela esses fatores não estão presentes como a principal causa do fluxo de migrantes – a razão principal tem sido a falta de alimentos, a crise econômica e política.

“Cada pedido de refúgio tem que ser analisado individualmente. É possível que, em alguns casos, se identifique uma perseguição política, mas não se pode generalizar.” Para ela, falar em “refugiados venezuelanos” é uma definição inadequada “tecnicamente”. “Não podemos dizer que existe uma questão de perseguição de forma generalizada, mas é possível que haja alguns casos.”

O exemplo haitiano

A crise migratória de 2014, quando milhares de haitianos começaram a chegar no Acre fugindo de seu país de origem após um devastador terremoto, tem sido usada como referência e inspiração para as medidas sugeridas pelo Conselho Nacional dos Direitos Humanos, também em acordo com a nova lei para imigrantes.

A interiorização é um destes aspectos, na qual se aprendeu a necessidade de uma gestão coordenada entre as três esferas de governo – federal, estadual e municipal. No caso dos haitianos, as regiões Sul e Sudeste se tornaram os principais destinos para aqueles em busca de emprego e de uma nova vida. O mesmo pode acontecer agora com os venezuelanos, embora Fabiana Severo destaque que a grande presença de indígenas pode representar um grupo sem interesse em sair da região Norte.

“Talvez a gente não consiga antecipar que seja o mesmo fluxo dos haitianos, mas na parte que for, os estados precisam se articular com o governo federal e antever esse fluxo para que não fiquem desamparados”, ressalta a presidenta do CNDH.

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