'Coragem!'

As várias faces de Dom Paulo contra a injustiça e a opressão

Documentário sobre o cardeal é lançado em São Paulo, um ano depois de sua morte. Amanhã, será a vez de biografia

divulgação

São Paulo – Nesta quinta-feira (14), quando se completa um ano de sua morte, entra em exibição, em sete capitais, o documentário Coragem – As muitas vidas do cardeal Dom Paulo Evaristo Arns, dirigido pelo jornalista Ricardo Carvalho. Um dia antes – data de edição do AI-5, em 1968 – será relançado, em São Paulo, o livro Dom Paulo, um homem amado e perseguido (Expressão Popular), das também jornalistas Evanize Sydow e Marilda Ferri. Na pré-estreia do filme, ontem (11) à noite, em São Paulo, diversos relatos mostraram a importância do religioso não apenas no combate ao autoritarismo, mas ao dar voz àqueles que, historicamente, não têm direito a falar. 

Um dos depoimentos mais marcantes é, talvez, o de Leonardo Boff, que no início diz que Dom Paulo guarda o arquétipo-base da existência humana, sendo, ao mesmo tempo, terno e vigoroso. Ao final, emocionado e quase sem falar, lembrará de um bilhete que recebeu de seu ex-professor quando ganhou uma viagem de estudos no exterior – e recebeu o conselho de voltar para ajudar a fazer um país melhor. Boff inclina o rosto e fecha os olhos, permanecendo longamente em silêncio. Pouco antes, havia associado Dom Paulo à santidade: “Santidade não é fazer milagres, é ser inteiro naquilo que faz”.

O documentário, com duração de 76 minutos e narração de Paulo Betti, traz também imagens curiosas do cardeal, mostrada por Maria Ângela Borsoi, sua secretária durante 40 anos, como a de celebração de uma missa no Palmeiras – Dom Paulo era um corintiano fanático e até escreveu um livro sobre seu time. Há também uma foto, sem data, de um jovem Paulo como ator de teatro amador. Outras mostram o ainda estudante na França, nos anos 1940. E até fazendo uma “ponta” na novela O Profeta, de 1977, na extinta TV Tupi. O governo mandou proibir o capítulo, mas as cenas foram ao ar e causaram represálias à emissora. O filme mostra como Dom Paulo – que tinha carteirinha de jornalista da Associação Brasileira de Imprensa (ABI) – sempre esteve à vontade entre jornalistas e gostou de usar a mídia para divulgar causas.

O professor Fernando Altemeyer, da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo, conta uma história curiosa, dos tempos em que era padre e atuava na zona leste paulistana. Ele e outros dois “demonizavam” o então prefeito da capital, Paulo Maluf. Dom Paulo os convocou para repreendê-los, dizendo que era preciso respeitar a liturgia do cargo. Foi uma “bronca federal”, lembra Fernando no filme. Até que o cardeal abriu uma porta e por ela passou justamente o prefeito. Dom Paulo explicou que já tinha conversado com os jovens padres. E arrematou: “Mas eles estão certos. O senhor não está fazendo nada pela cidade”. Deu a bronca em particular, mas perante a autoridade defendeu os três.

Autor de dois livros sobre o religioso, Ricardo Carvalho mostra no documentário as mudanças protagonizadas por Dom Paulo à frente da Arquidiocese, mesmo ainda como bispo auxiliar, com o desenvolvimento das Comunidades Eclesiais de Base – que ajudaram a render mais de mil fichas sobre o religioso no Serviço Nacional de Informação (SNI) da ditadura (ganharia outras 46 no Dops paulista). Ele foi bispo auxiliar de São Paulo, atuando na região Norte, de 1966 a 1970, quando substituiu Dom Agnelo Rossi na Arquidiocese. O filme começa com cenas de uma missa solene na Catedral da Sé, em 2016, pelos 50 anos da ordenação episcopal de Dom Paulo. Ele canta a Oração de São Francisco, que também será interpretada em versão rap e na voz de Maria Bethânia.

“O povo tem de ocupar o centro da nossa preocupação”, diz Dom Paulo em um dos vários depoimentos colhidos. “Eu aprendi a consultar o povo, enquanto o governo mandava o povo calar a boca.” O filme também aborda a tentativa de enfraquecimento do religioso por parte justamente de Roma, que dividiu a Arquidiocese de São Paulo em cinco dioceses autônomas. “Com os Papas sempre me dei bem. Agora, a Cúria Romana é outra questão”, comenta.

Santo e Vlado

Em 1997, foi construída a Casa de Oração do Povo de Rua, com dinheiro recebido por Dom Paulo de um prêmio no Japão. Originalmente, a ideia era erguer um centro de apoio, mas os moradores de rua, segundo se narra no filme, queriam uma “catedral” própria, porque seriam malvistos por frequentadores da Sé. Foi feita, então, a Casa de Oração, com alguma infra-estrutura, atendendo a pedido do cardeal, tendo à frente, até hoje, o padre Julio Lancellotti, um dos vários presentes à pré-estreia. “Ele (Dom Paulo) crê que atrás da pessoa tem uma verdade, mais importante que a silhueta”, diz Fernando Altemeyer, para quem o cardeal tinha algo de São Francisco e de Tomás de Aquino. Além da Casa de Oração, foi criado o Amparo Maternal, e há uma cena de Dom Paulo presenciado um parto e abençoando o recém-nascido.

O diretor do documentário busca retratar as várias linhas de atuação de Dom Paulo: cardeal da periferia, do movimento operário, do povo de rua, dos direitos humanos, da resistência, da esperança. Muitos repetirão uma palavra sempre repetida pelo religioso, que dá título ao filme: “Coragem!”.

Coragem foi preciso para elaborar o livro Brasil: Nunca Mais!, com relatos de tortura no país, publicado ainda sob a ditadura e, por isso, escrito em segredo durante mais de um ano, conforme conta o jornalista Ricardo Kotscho, um dos autores. Ou para enfrentar os algozes de Santo Dias, metalúrgico e militante assassinado por um policial durante piquete em porta de fábrica, em 1979. Dom Paulo foi ao IML, ao lado da viúva, Ana Dias (também presente no documentário), e chamou todos de assassinos. A missa por Santo parou a cidade.

Outras histórias que não poderiam faltar: a “carona” dada a Dom Paulo pelo então presidente dos Estados Unidos, Jimmy Carter, até o Aeroporto do Galeão, no Rio de Janeiro, em 1977, surpreendendo as autoridades. A escolha de Waldemar Rossi para dirigir uma mensagem ao Papa João Paulo II, durante evento no estádio do Morumbi, em 1980. E a célebre missa de 31 de outubro de 1975, na Sé, em memória do jornalista Vladimir Herzog, o Vlado, morto sob tortura no DOI-Codi paulistano. O filme teve apoio do Instituto Vladimir Herzog.

O documentário traz ainda passagens menos conhecidas, como uma reunião de Dom Paulo com o presidente-general Emílio Garrastazu Médici, em 1971, no auge da repressão política no Brasil. “O Médici foi duro. Mas tivemos de ficar firmes até a última linha da frase que os militares não mandam na nossa liberdade”, disse o cardeal.

Há também relatos de encontro de familiares de presos com o Golbery do Couto e Silva, homem forte do regime, em 1979. E sobre a “intensa troca de correspondência” com Fidel Castro, que rendeu críticas ao cardeal. Este respondeu que sempre esperava poder conseguir alguma brecha “onde não se consegue abrir a porta”. E a história, a partir de uma descoberta do grupo Clamor, de atuação na América Latina, de duas crianças sequestradas na Argentina e descobertas no Chile.

E histórias da família, como quando a mãe de Dom Paulo, dona Helena, queria “rezar contra” um general que estaria ameaçando seu filho. E muitas lembranças de Forquilhinha, pequena cidade do sul catarinense onde ele nasceu, em 1921. Vários irmãos dão depoimentos. Dona Helena e seu Gabriel tiveram 13 filhos naturais e dois adotivos. 

Ali se conta a escolha de Nadir Kfouri como reitora de PUC paulista, por escolha de Dom Paulo. Foi a primeira mulher no mundo a assumir uma universidade católica. Margarida Genevois, da Comissão Justiça e Paz, criada em 1972, lembra quando foi designada para representá-lo em um evento no exterior. Causou espanto a presença de uma mulher como representante do cardeal. “Os homens têm de criar juízo”, diz Dom Paulo no filme, sobre a necessidade de reconhecimento da igualdade com as mulheres.

Ivo Herzog, José Gregori, Margarida Genevois, Dom Celso Queiroz, Douglas Mansur, José Luiz Del Roio, Pérez Esquivel, Roberto Romano, Padre Ticão, Dom Angélico Sândalo Bernardino, Sérgio Gomes, entre outros, dão seu testemunho no filme. Dom Paulo chegou a ver uma das versões, três meses antes de morrer.

Na pré-estreia, no Cine Belas Artes, estavam padre Julio, o ex-ministro de Direitos Humanos Rogério Sottili, os procuradores da República Marlon Weichert e Eugênia Gonzaga (presidenta da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos), Frei Betto, Antônio Funari (Comissão Justiça e Paz), Ivo Herzog, Del Roio, em uma sessão que lotou a sala e terminou com todos aplaudindo de pé. Cartazes do filme eram vendidos para arrecadar recursos à Pastoral do Povo de Rua. Coragem, alguém murmurou à saída.

 

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