Ditadura

Filme discute anistia brasileira e retoma debate sobre julgamento no STF

Alguns acreditam que o tribunal ainda poderá reconsiderar decisão contrária à revisão da lei de 1979. Eles lembram que crimes contra a humanidade não prescrevem

O advogado Fábio Konder Comparato, em cena do documentário Olhares Anistia

São Paulo – Sete anos atrás, o Supremo Tribunal Federal (STF), por 7 votos a 2, foi contra revisar a Lei da Anistia (6.683, de 1979), mas o debate continua. Recursos esperam para ser apreciados pelo relator, ministro Luiz Fux, criticado por não dar seguimento à ação. A polêmica segue acesa e voltou ao debate na noite de ontem (6), durante lançamento de Olhares Anistia, do cineasta pernambucano Cleonildo Cruz, na Câmara Municipal de São Paulo.

O filme, de 70 minutos, causou incômodo na plateia do Salão Nobre, por exibir depoimentos de vários agentes do Estado na época da ditadura, inclusive Carlos Alberto Brilhante Ustra. O diretor disse que era preciso ouvi-los. “Mas o filme aponta para um caminho que não está resolvido ainda, que é a Justiça de Transição”, afirmou. Falta responsabilizar os agentes do Estado que cometeram crimes de lesa-humanidade.

Ustra e outros militares entrevistados repetem que a anistia “pôs uma pedra” no assunto e que é preciso seguir em frente. Esse é também o entendimento do jurista conservador Ives Gandra da Silva Martins, pai do atual presidente do Tribunal Superior do Trabalho (TST). Mas muitos lembram que, à luz do Direito Internacional, crimes contra a humanidade, como sequestros, tortura e desaparecimentos forçados, não prescrevem.

Entre os entrevistados, alguns manifestam esperança de que o STF possa rever a sua posição. Não será fácil, observa o ex-ministro de Direitos Humanos Paulo Vannuchi. Temos esperança, é possível que o Supremo reveja o seu posicionamento, diz o advogado e deputado Wadih Damous (PT-RJ).

O documentário começa justamente com o julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 153, em 28 de abril de 2010. Exibe cenas do sepultamento do ex-presidente João Goulart (em 1976), em cujo caixão havia uma bandeira com a palavra “Anistia”. Mostra cenas de retorno de exilados após a promulgação da lei, em agosto de 1979, ainda na ditadura. A “anistia possível”, como muitos falam até hoje.

O procurador da República Marlon Weichert e o ex-presidente da Comissão de Anistia Paulo Abrão afirmam, no filme, que não é preciso mudar a lei, e que os agentes do Estado envolvidos em crimes contra a humanidade podem e devem ser responsabilizados. “O conceito de anistia no Brasil ainda está em disputa”, diz Abrão, afirmando que a Constituição de 1988 acrescentou um conceito de reparação, ao afirmar que a anistia será dada aos que foram atingidos, “em decorrência de motivação exclusivamente política”, por atos de exceção.

“É o único país do continente que ainda isenta os torturadores de responsabilização”, afirma o ex-ministro Nilmário Miranda. O advogado Fábio Konder Comparato fala em “engodo” ao se referir à lei, que teria representado um “atestado de impunidade” para torturadores, e presta homenagem aos jovens de hoje, pela realização de “escrachos” diante da casa de violadores de direitos humanos durante a ditadura.

Indignação

O evento de ontem, conduzido pelo vereador Antonio Donato, líder da bancada do PT na Câmara paulistana, e pelo ex-deputado Adriano Diogo, agora secretário nacional de Direitos Humanos do PT, também prestou homenagem a Carlos Marighella, assassinado em 1969 pela ditadura, e ao ex-deputado Ricardo Zarattini, que morreu no mês passado. Estavam presentes, entre outros, Clara Charf e Carlos Augusto, viúva e filho de Marighella, e Mônica Zarattini, filha de Ricardo – o deputado federal Carlos Zarattini (PT-SP) também passou pela Câmara, além da presidenta da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, a procuradora Eugênia Gonzaga. 

“Meu pai não era um mau brasileiro. Pelo contrário, era um apaixonado pelo seu país. Este ato reafirma que Marighella é um herói do nosso país”, disse Carlos Augusto. “As ideias dele (Ricardo) permanecerão. São ideias de socialismo, de liberdade”, afirmou Mônica.

Muitos questionaram o argumento do “dois lados” bradado repetidamente pelos defensores do regime autoritário, segundo os quais os ativistas contra a ditadura também deveriam ser responsabilizados. Isso já aconteceu, disseram Eugênia e outros, lembrando que esses militantes foram processados judicialmente – além de terem sido sequestrados, torturados e, em vários casos, se tornado desaparecidos.

“Nunca houve dois lados”, disse a advogada Eny Moreira. “Houve um governo ilegítimo que usurpou o poder. Isso é uma forma de desviar o centro da questão.” Defensora de presos políticos durante a ditadura, ela chegou a ser ameaçada por Ustra quando foi visitar um deles no DOI-Codi. Se “bancasse a engraçadinha”, também seria pendurada. “Não era coragem, era a indignação que movia a gente.”