o absurdo

Curador da exposição Queermuseu desanca senadores obscurantistas em CPI

Gaudêncio Fidelis, curador de exposição fechada em setembro após pressão de conservadores, enfrentou preconceitos de parlamentares e questionou difusão de mentiras em redes sociais

reprodução/tv senado

Gaudêncio mostra a imagem da obra ‘O Eu e o Tu’, de Lygia Clark, uma das maiores artistas brasileiras

São Paulo – Durante sessão da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) dos Maus Tratos a Crianças e Adolescentes, presidida por Magno Malta (PR-ES), o senador José Medeiros (Pode-MT) questionou o curador da exposição Queermuseu, Gaudêncio Fidelis, sobre materiais que constavam em seus documentos como “provas” de conteúdo impróprio da mostra censurada em setembro, pelo mantenedor Santander, por pressão de grupos políticos conservadores como o Movimento Brasil Livre (MBL).

Todos foram desmontados como boatos de redes sociais, notícias e imagens falsas. Uma delas era a distribuição de uma suposta cartilha para estudantes. “A grande maioria das grandes instituições brasileiras desenvolve um projeto educativo muito extenso para cada exposição”, disse o curador.

Medeiros questionou se Gaudêncio não teria “mandado fotos das obras para as escolas”, e foi prontamente respondido: “Vou concluir para deixar mais claro. O projeto educativo do Santander é destinado à formação de professores. Ele é realizado a partir dessa formação e depois executado, destinado para as escolas. Esse é um processo contínuo. Com isso, é produzida uma publicação, que imagino ser esta cartilha à qual o senhor se refere”, disse.

“Esse caderninho é chamado material de professores e serve como instrumento para que os professores entendam melhor a exposição”, continuou.

Medeiros replicou dizendo ter recebido “vasto material como figuras e twitteres”. O senador mostrou duas figuras para o curador. Devido ao conteúdo explícito, o parlamentar pediu discrição ao mostrar as imagens para o curador que respondeu: “Essa obra não pertence à exposição Queermuseu. Mas quero fazer uma observação. Nesse processo difamatório, uma das coisas que aconteceu foi que, em algum momento experienciamos um fenômeno surpreendente que simplesmente me chocou, que foi uma produção inacreditável de imagens de obras que não estavam na exposição. Isso nos coloca um problema extraordinário e insolúvel. Quando uma obra é jogada na internet, como provamos que não pertence, quando a exposição, além de tudo, está fechada?”, disse.

“Nós tentamos, de todas as maneiras possíveis, comunicar, não por nenhuma razão, mas apenas comunicar que essa e várias obras não pertenciam à exposição. Isso seria fácil de constatar se as pessoas tivessem acesso à exposição”, acrescentou.

Neste momento, a senadora Marta Suplicy (PMDB-SP) pediu a palavra: “Essa fala corrobora com o argumento em relação ao uso que foi feito da arte para outros fins. Foi muito orquestrado. Lamento que tenhamos embarcado nisso, um movimento criado para inventar uma turbulência e uma polarização que não tem a ver com a arte”, disse.

Outro ponto apresentado pelo senador, que foi prontamente desconstruído, dizia respeito a uma obra da artista brasileira Lygia Clark. “Havia um exercício para as pessoas transitarem entre os gêneros para viver uma experiência em outro sexo. Queria que o senhor confirmasse se essa performance existia e se crianças participaram dela”, disse Medeiros.

A explicação de Gaudêncio: “Essa é uma obra histórica de uma das artistas mais celebradas do mundo e se chama O Eu e o Tu, que foi produzida na década de 1960. Essas obras são compostas de dois macacões em uma escala grande, para adultos. Ela discutia, dentro do contexto da produção dos anos 1960 a transição não necessariamente de gênero, mas de percepção do outro. Essa obra é uma obra muito importante, que já esteve em inúmeras exposições do mundo, e tem um caráter museológico. Ela não pode ser manipulada, é uma obra de museu. Ela estava na exposição desta forma”.

“Então, a resposta é não”, completou.

O senador retrucou: “Então não haviam crianças dentro dela?”. A resposta do curador: “São macacões de 2 metros e ela não foi feita com essa concepção que o senhor descreveu. Ela foi feita para uma experiência, procurando ser preciso, de entendimento do outro a partir do fato de que o outro possa ser considerado com uma visão a priori do que ele é. Ela tem capuzes. É uma obra para adultos, até porque a obra traz questões complexas e conceituais. É uma obra histórica”, disse.

“Esse comentário se originou, para o choque de todos nós, em uma entrevista coletiva em Porto Alegre, onde estava o filho de Lygia Clark. Uma pessoa que participava da entrevista, coordenadora do Movimento Brasil Livre (MBL), fez uma afirmação peremptória e disse: ‘Havia nessa exposição obras para crianças vestirem e se tocarem sexualmente’. Isso foi um choque tão grande porque, primeiro, estávamos diante do filho da artista que tem 60 anos, e é uma obra conhecida internacionalmente, uma das obras mais importantes da história da arte brasileira e mundial”, reagiu.

Medeiros concluiu tentando justificar a convocação de Gaudêncio à CPI. “Como o senhor explicou, a vestimenta estava lá e lhe confesso que não sou a última bolacha, o suprassumo do progressismo, mas também não estou na caverna. Mas confesso que me choquei quando diziam que as crianças se vestiam e se tocavam sexualmente (…) O senhor me tira uma laje da cabeça agora que era apenas uma roupa lá de uma obra. Estou satisfeito”, disse.

Sobre a mentira do MBL, Gaudêncio completou: “Essas obras estavam em manequins, fixos, porque não podem ser tocadas”.

Diante do boato divulgado pelo grupo político conservador de direita, o senador Humberto Costa (PT-PE) pediu a palavra: “Foi excelente a vinda do doutor Gaudêncio. Me preocupo com o que acontece hoje no nosso país e no mundo inteiro. Para o que essas redes sociais terminam se prestando? Vai depender de quem faz o uso delas. Eu vi essa semana algo que nem um louco acreditaria. Um cidadão botando um deputado identificado com a questão LGBT dizendo que ele era namorado de outro identificado como o mais homofóbico do Brasil”, disse.

“Imagina o prejuízo que houve, por exemplo, para a criança em relação à obra do Masp. No colégio dessa criança, os amigos da mãe dessa criança. Qual foi o grande crime? Foi divulgar aquilo. No caso do Queermuseu, não sei os outros quadros, mas só por esses exemplos vemos uma manipulação. Nós aqui não podemos embarcar nisso, o Parlamento. Precisamos ter um cuidado maior em relação a essas coisas”, completou Costa.