Tempos turbulentos

A ‘construção interrompida’ e o país distante de Celso Furtado

Com visões diferentes sobre obra do economista e pensador, seminário mostra preocupação comum sobre a falta de um projeto nacional

Adi Leite/Folhapress/1992

Furtado já estava muito decepcionado com o Brasil no final da vida

São Paulo – Logo de início, o professor Ricardo Bielschowsky cita questionamentos feitos por Celso Furtado no documentário O Longo Amanhecer, de 2006: “Eu me pergunto: quem manda neste país? Por que se conservam essas taxas de juros de fantasia, que sangram o país, deixando pequena margem para o crescimento? É difícil dirigir um país como este”. Era o começo de um seminário, na Universidade de São Paulo (USP), que discutiu o legado do economista e ex-ministro do Planejamento, considerado um dos principais pensadores do Brasil.

Mesmo no cenário difícil como o atual, Bielschowsky, do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), disse tentar “manter o otimismo histórico” de Celso Furtado em sua esperança de transformar o país – dentro de certos parâmetros. “Ele não era um socialista, digamos assim, não jogava as fichas em ruptura do capitalismo. Era um adepto da social-democracia clássica, progressista”, define.

O seminário, realizado na terça-feira (17), fechava um ciclo de leituras de um grupo de pesquisa (Pensamento e Político no Brasil) formado por estudantes e professores e coordenado por André Singer e Bernardo Ricupero. Na mesa, Singer explica que a análise de Formação Econômica do Brasil, clássico escrito por Furtado em 1958, vinha a partir de “uma leitura de cientistas políticos, não de economistas”.

Já a mesa do debate tinha três economistas (Bielschowsky, Luiz Carlos Bresser-Pereira, da Fundação Getúlio Vargas, e Plínio de Arruda Sampaio Jr., da Universidade Estadual de Campinas, Unicamp) e uma cientista política (Vera Alves Cepêda, da Universidade Federal de São Carlos). Visões diferentes e uma preocupação em comum: a falta de um projeto nacional.

“Vamos desistir ou vamos batalhar sobre os erros e consertar?”, pergunta o professor da UFRJ, também falando de Celso Furtado. “Será que ainda há condições políticas para avançar em um projeto dessa natureza?”

Ele cita uma série de itens que precisam ser discutidos em um debate sobre o desenvolvimento: estabilidade econômica, salários e produtividade, formalização do trabalho, acesso a bens e serviços públicos, impostos progressivos, cobertura universal, previdência pública e solidária. “Não existe país no mundo que consiga fazer sua sustentação a longo prazo que não passe por uma reindustrialização radical”, afirma Bielschowsky, para quem houve avanço nos governos recentes, mas “não se fez uma reforma tributária que desfizesse a péssima distribuição de renda”.

Há muitos “temas em disputa” entre conservadores e progressistas, como reforma tributária, políticas sociais, reforma da Previdência, política macroeconômica, modelos de desenvolvimento, democracia, reforma política. “A lista é enorme, e o balanço não está nos parecendo muito favorável”, afirma o professor da UFRJ, falando do campo progressista.

Para Plínio, da Unicamp, Celso Furtado é um autor muito homenageado no Brasil, mas pouco estudado. “O Brasil de Furtado é o que luta para se consolidar em uma democracia minimamente autônoma”, observa, chamando a atenção para os “dilemas” da formação do país. Para superar desigualdades, é preciso pensar na base material de uma economia nacional.

Furtado, lembra, identificou a relação entre subdesenvolvimento e a formação da nação. Hoje, acrescenta o professor, “estamos assistindo o desmonte da nação”. Ele acredita que, para que haja efetivamente avanços, o Brasil precisa de rupturas, mudanças estruturais.

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Visões diferentes e uma preocupação em comum: a falta de um projeto nacional.

Estado soberano

“Felizmente, o Furtado morreu em 2004 para não ver o que está acontecendo hoje”, comenta Vera, autora, em 1998, da dissertação de mestrado Raízes do Pensamento Político de Celso Furtado, na USP. A professora, que também destaca a presença do subdesenvolvimento na formação brasileira, comenta a importância, para o economista, de se estabelecer condições para um Estado “social, autônomo, soberano, livre, com capacidade de prover o seu próprio futuro, capaz de produzir uma nova economia para além das regras do mercado, de fazer reformas estruturais”.

Para ela, de certa forma Celso Furtado pôs a política à frente da economia, “embora seu método de trabalho venha da dimensão econômica”. E ressalta a importância da democracia: “Se acumula melhor em regimes fechados, se distribui melhor em regimes abertos”.

Ao apresentar Furtado como “mestre e amigo”, Bresser-Pereira disse que o economista estava “muito decepcionado com o Brasil” no final da vida. Segundo ele, o país experimentou algum crescimento no período 1950/1980, com crescimento anual per capita de 4,5%, caindo para 1%, em média, a partir dos anos 1990, com o predomínio do liberalismo econômico. 

Lula e Dilma, diz Bresser-Pereira, fizeram “esforços políticos para tentar recuperar o desenvolvimentismo”, mas esbarraram em uma falta de capacidade de elaborar uma política econômica que garantisse taxa de juros razoável, além de manter o câmbio muito valorizado. “Não podemos ficar na mão dos economistas liberais”, afirma, citando ainda a presença crescente do chamado rentismo: “O rentista não é sócio do crescimento. É sócio da espoliação”. 

Bielschowsky repete o termo “reindustrialização radical” como fator-chave para o país, mas admite problemas. “Eu não sei onde está o Estado que vai fazer isso, onde está a burguesia industrial que vai fazer isso.” Ele e Plínio Jr. voltam a falar do subdesenvolvimento como característica brasileira – a “primazia da desigualdade”, diz o professor da Unicamp, tem raízes estruturais. “Assim como abacateiro não dá jabuticaba, economia de subdesenvolvimento não dá Estado de bem-estar social.”

Uma pessoa da plateia pergunta sobre a Emenda Constitucional 95, que limita gastos públicos durante 20 anos. “Inviabiliza qualquer possibilidade de vida civilizada no Brasil, inviabiliza o Brasil”, responde Plínio. “O Brasil vai ferver, e nós vamos para uma polarização brutal da luta de classes”, acrescentando, prevendo “tempos turbulentos pela frente”. 

Bresser-Pereira considera a emenda “um escândalo, uma coisa sem pé nem cabeça”, mas acredita que algo ainda pode mudar. “Logo no começo do próximo governo vai surgir o problema, e eles vão ter de fazer alguma coisa”, afirma, antes de observar que “o capitalismo hoje não é mais de empresários, mas de rentistas”.

 

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