Sindicatos apuram ação do Ministério do Trabalho na ditadura e tentam salvar arquivos

A vigilância e a repressão sempre fizeram parte do dia a dia do órgão público, apontam pesquisadores. Grupo de trabalho entregará relatório em dezembro

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Centro de Referência do Trabalhador Leonel Brizola: material em caixas de papelão mal acomodadas

São Paulo – O grupo de trabalho que investiga a atuação do Ministério do Trabalho durante a ditadura e outros períodos autoritários fez hoje (31) sua primeira audiência pública, apresentando depoimentos e documentos e mostrando que muitos arquivos estão deteriorados. Imagens divulgadas durante o evento mostram grande número de caixas empilhadas de forma irregular em um depósito. Os sindicalistas que compõem o grupo apresentarão um relatório final em 5 de dezembro, mas já concluem que, apesar de a situação ter piorado após 1964, “a polícia sempre fez parte das ações do ministério”.

O trabalho tem à frente o IIEP (Intercâmbio, Informações, Estudos e Pesquisas), entidade criada por educadores, acadêmicos e sindicalistas. No ano passado, foi formado um grupo dentro da comissão da verdade do próprio ministério, para iniciar a pesquisa – o órgão apoiou a investigação. A crise política interrompeu as atividades durante quase todo o ano, e elas só foram retomadas no final de novembro. O coordenador geral de Relações do Trabalho da secretaria que leva o mesmo nome, Antonio Artequilino, participou da audiência desta quarta-feira, realizada na sede do Dieese, na região central de São Paulo. Estão marcadas mais cinco audiências públicas, em Belém, no Rio de Janeiro, Recife, Porto Alegre e Brasília.

Os pesquisadores já identificaram mais de 5 mil caixas, em três locais de Brasília: a própria sede do Ministério do Trabalho, na Esplanada, o Arquivo Nacional e o Centro de Referência do Trabalhador Leonel Brizola. Nesse último, principalmente, imagens divulgadas na manhã de hoje mostram material “em estado lastimável”, como define o coordenador do IIEP, Sebastião Neto, com caixas de papelão mal acomodadas em uma área extensa e sem a devida proteção. Sindicalistas entregaram a Artequilino um documento pedindo preservação dos documentos. Ele se comprometeu a entregá-lo ao ministro Ronaldo Nogueira.

O período pesquisado vai de 1946 a 1988, abrangendo, por exemplo, o governo Gaspar Dutra, também reconhecido como de perseguição a trabalhadores e dirigentes sindicais. A situação piora depois de 1964, observa Neto. “Há um relação institucional entre os serviços de segurança e as empresas. O controle é político e ideológico. Não precisa de prova. Há uma normatização da repressão.” Já no pós 1985, quando termina formalmente a ditadura civil-militar, “as intervenções (nos sindicatos) terminam, mas a espionagem continua”. Nenhum governo cuidou do material, observa. Para ele, a tarefa caberá ao próprio movimento sindical. Se isso não acontecer, emenda, com ironia, os documentos serão preservados apenas “quando o Sargento Garcia prender o Zorro”.

Violação de direitos humanos

Com a participação de nove centrais sindicais, o grupo de trabalho tem dois focos: investigar o modus operandi das intervenções e apurar a atuação do Sisni, o Sistema Nacional de Informações, cujo braço mais visível era o SNI. Os ministérios civis contam com Divisões de Segurança e Informações (DSIs).

A atuação de empresas na perseguição a trabalhadores foi objeto de estudo da Comissão Nacional da Verdade (CNV), que encerrou atividades em dezembro de 2014, e diversas comissões regionais. Uma das recomendações fala em prosseguir nas investigação de  casos de massacres de trabalhadores durante o regime militar e o apoio dispensado por empresas e empresários para a criação e o funcionamento de estruturas utilizadas na prática de graves violações de direitos humanos”. Durante a audiência pública, também se discutiu a presença de sindicatos “delatores” e a organização de listas de trabalhadores que passaram a circular nos departamentos de recursos humanos das empresas.

De 1964 a 1970, segundo a CNV, foram feitas 536 intervenções, sendo 483 em sindicatos, 49 em federações e quatro em confederações. A maior parte (80,6%) em 1964 e 1965, juntamente com a cassação de 63 dirigentes.

“Tudo o que foi exposto (na audiência) é a nossa história, do movimento operário, do trabalhador, que está aí para ser resgatada”, diz o metalúrgico Lúcio Bellentani. Em 1972, ele foi preso em seu próprio local de trabalho, na Volkswagen de São Bernardo do Campo, no ABC paulista, e torturado na própria fábrica. O caso levou o Ministério Público a abrir investigação sobre a montadora. Sindicalistas também acionaram o comitê mundial de trabalhadores na Volks e a própria direção da empresa. “Quantas Volkswagens existem na nossa história? O poder empresarial sempre perseguiu a classe trabalhadora”, afirma Bellentani, para quem a história se repete nos tempos atuais. “Estão querendo novamente prejudicar os trabalhadores e o nosso povo.”

No evento, foram homenageados, entre outros, o ex-ministro do Trabalho Walter Barelli, diretor técnico do Dieese durante mais de 20 anos, o ex-secretário estadual Plínio Sarti e o ex-titular da Delegacia Regional do Trabalho (atual Superintendência) Antônio Funari Filho. Estavam na plateia o ex-líder ferroviário Raphael Martinelli, integrante do Comando Geral dos Trabalhadores (CGT), desfeito em 1964, e o ex-metalúrgico José Ferreira da Silva, o Frei Chico, irmão do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva – ele era filiado ao PCB e foi preso e torturado durante o regime ditatorial.

A pesquisadora Heliene Nagasava, do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (Cpdoc), da Fundação Getúlio Vargas, investigou a atuação do Ministério do Trabalho durante o governo Castello Branco, nos três primeiros anos da ditadura. Analisou 36 processos. “O Ministério do Trabalho deixa que o Exército decida sobre os assuntos dos quais não tem conhecimento”, observa.

Um dos casos envolveu o Sindipetro (sindicato dos petroleiros) do Paraná, que teve a diretoria cassada e acusada de orientar a política da entidade “de acordo com a linha esquerda Jango-Brizola”. O interventor ainda acusou o presidente da entidade de roubo. Nada se apurou, mas o interventor já havia decidido: “Todos esses elementos são culpados até prova em contrário”.

A inexistência de provas, todavia, não significava muito nesses processos”, comenta a pesquisadora. Outro caso foi de um general que interveio no Sindicato dos Bancários de Caxias do Sul (RS), logo nos primeiros dias de golpe, em abril de 1964. Segundo ele, a diretoria “estava implicada em atos de subversão à ordem”.