Ditadura

MPF lamenta decisão judicial: ‘Nenhuma mulher merece ser estuprada’

Caso envolve militante política Inês Etienne Romeu, única sobrevivente da Casa da Morte. Ministério Público irá recorrer de decisão 'teratológica' de juiz da 1ª Vara de Petrópolis

Tânia Rego / Abr

Juiz desconsiderou o testemunho da própria vítima, que morreu em 2015, aos 72 anos

São Paulo – A Câmara Criminal do Ministério Público Federal (MPF) divulgou nota nesta quarta-feira (8) lamentando decisão da 1ª Vara Federal de Petrópolis (RJ), que negou ação penal pelo estupro, em 1971, de Inês Etienne Romeu, tida como única sobrevivente da chamada Casa da Morte, centro de torturas que funcionou clandestinamente naquele município durante a ditadura. Além de negar a ação contra um militar, o juiz Alcir Luiz Lopes Coelho, na sentença, disse que o MPF formou um “tribunal de exceção”, referindo-se a investigações de crimes ocorridos no período autoritário, e não considerou o testemunho da própria vítima, que morreu em 2015, aos 72 anos. O Ministério Público lembrou que tomou conhecimento da “lamentável sentença” no Dia Internacional da Mulher.

“A única certeza do magistrado volta-se contra a vítima, por ele qualificada como perigosa terrorista. Com base nesta certeza, o juiz federal conclui sua sentença dizendo que ‘ninguém é contra os direitos humanos, desde que sejam direitos humanos de verdade, compartilhados por todos os membros da sociedade, e não meros pretextos para dar vantagens a minorias selecionadas que servem aos interesses globalistas’. Como se trata de uma ação penal por crime de estupro, imagina-se que a ‘vantagem à minoria selecionada’, referida pelo magistrado, seja o direito de todas as mulheres de não sofrerem violência sexual”, diz a nota do MPF, assinada pela subprocuradora da República Luiza Frischeisen, coordenadora da Câmara Criminal. No trecho citado, o juiz fazia referência ao escritor conservador Olavo de Carvalho.

“O Ministério Público Federal, por intermédio de sua Câmara de Coordenação e Revisão em Matéria Criminal, lamenta veemente tal concepção, pois nenhuma mulher, ainda que presa ou condenada, merece ser estuprada, torturada ou morta. E tampouco pode o sistema de justiça negar desta maneira a proteção da lei contra ato qualificado no direito internacional como delito de lesa-humanidade”, acrescenta o órgão. O MPF adianta que irá recorrer da sentença, esperando que o Tribunal Regional Federal da 2ª Região reforme a decisão “teratológica” (monstruosa).

Militante da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), Inês foi sequestrada por agentes da ditadura em maio de 1971 e levada à Casa da Morte. “Naquele local, foi barbaramente torturada e estuprada por pelo menos duas vezes, por um militar à época identificado apenas como ‘Camarão’. Denunciou o fato à OAB em 1979, após o início da ‘abertura lenta e gradual’, tornando-se uma das principais testemunhas do funcionamento clandestino e ilegal da repressão política”, descreve a nota. Investigações posteriores identificaram “Camarão” como sendo o militar Antonio Waneir Pinheiro Lima. 

Para o juiz, a denúncia não poderia ser aceita por causa da Lei da Anistia, de 1979, e do prazo de prescrição do crime de estupro. O MPF afirma que esse argumento já foi derrubado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos. “Além de sustentar que os crimes foram anistiados e estão prescritos, a decisão judicial desqualificou todas as provas obtidas pelo MPF e, o que é pior, desqualificou o próprio valor probatório da palavra da vítima nos crimes sexuais, ao afirmar que o fato só foi relatado após 8 anos do ocorrido, como se as portas da Justiça daquele período estivessem abertas a todos os que foram sequestrados, torturados ou desaparecidos por agentes do Estado”, acrescenta a subprocuradora.

Na nota, o Ministério Público repudia a afirmação do juiz sobre um suposto “tribunal de exceção”. “As 27 ações penais até agora propostas são o resultado de dedicado e difícil trabalho de investigação desenvolvido por procuradores da República em São Paulo, Rio de Janeiro, Petrópolis, Marabá e Rio Verde, e estão embasadas em provas testemunhais, documentais e periciais concretas. O MPF, além disso, não funciona como tribunal pois não julga, limitando-se a investigar e ajuizar as ações penais para que a Justiça decida sobre o mérito da causa, respeitado o direito ao contraditório e à ampla defesa.”