Sistema de Justiça

Pesquisa revela que juízes e promotores legitimam violência nas audiências de custódia

A iniciativa é importante para coibir os abusos da polícia e prisões desnecessárias, mas estudo da Conectas mostra que o sistema de Justiça está avalizando a violência policial

Arquivo CNJ

Audiências de custódia em São Paulo completam dois anos sem coibir a violência policial

São Paulo – Estudo divulgado na terça-feira (21) pela organização Conectas Direitos Humanos revela que magistrados, promotores e até defensores públicos naturalizam a violência policial durante as audiências de custódia na cidade de São Paulo. Implementada no Brasil em fevereiro de 2015 – inicialmente na capital paulista –, a audiência é um importante avanço no sistema de Justiça, ao estabelecer que a pessoa presa em flagrante seja apresentada ao juiz em até 24 horas. A ideia é que o magistrado decida se o acusado deve seguir preso, se poderá responder o processo em liberdade, ou ainda ter sua prisão relaxada, caso o juiz considere o flagrante ilegal.

O procedimento também visa permitir que juízes, promotores e defensores públicos avaliem a ocorrência de maus tratos ou tortura durante a prisão em flagrante e, se for o caso, instaure investigação criminal ou administrativa contra o agente acusado.

Segundo a pesquisa intitulada Tortura Blindada – Como as instituições do sistema de Justiça perpetuam a violência nas audiências de custódia, o Ministério Público não intervém em 80% dos casos em que há relato de violência, apesar de ter a atribuição constitucional de fiscalizar as polícias. Nos restantes 20% dos casos em que os promotores se manifestaram, em 60% deles a intervenção visou deslegitimar o relato do acusado e somente em 20% a intenção foi apurar os fatos.

“É impressionante o Ministério Público não perguntar sobre tortura em 80% dos casos. Isso significa que o promotor se omite de cumprir sua obrigação de controlar a polícia”, afirmou Rafael Custódio, coordenador do Programa de Justiça da Conectas, durante a apresentação da pesquisa, no Memorial da Resistência, na capital paulista. “Essa constatação traz para todos nós as questões: o que é o Ministério Público? É esse o Ministério Público que queremos? Que tipo de sistema de Justiça nós teremos com essa atuação?”

Para Débora Duprat, procuradora do Ministério Público Federal (MPF), a instituição foi concebida na Constituição para ser a “grande defensora dos direitos humanos”. Entretanto, a realidade tem demonstrado o contrário. “O Ministério Público não pode se livrar da perspectiva dos direitos humanos, mas isso se perdeu ao longo do tempo e a instituição naturaliza a violência policial e fecha os olhos para os direitos humanos”, afirmou.

A pesquisa analisou 393 casos, ocorridos entre julho e novembro de 2015, em que houve sinais de torturas ou maus-tratos contra o indivíduo entre o flagrante da prisão e a audiência de custódia apenas um caso dos 393 relatos de violência o juiz tomou a decisão de abrir inquérito policial. A análise revela que, se entre os promotores 80% não questionam quando o acusado fala em tortura, esse dado é melhor entre os juízes: 75% deles intervém quando há relato de violência e 25% se calam. Porém, quando o preso não aborda espontaneamente o tema, em 33% dos casos os juízes também não perguntam se houve violência.   

Já entre os defensores públicos 51% se manifestam quando o preso cita ter sofrido violência e 49% não. No caso dos defensores, a pesquisa constatou que é na entrevista prévia antes da audiência que o preso costuma contar o que houve, apesar dessa conversa acontecer no corredor e na presença de um policial. A pesquisa identificou ainda que a Defensoria foi a única instituição que tentou trazer novos elementos para o processo, como o questionamento por testemunhas, o interesse em câmeras de vídeo na rua e no GPS da viatura policial.

Para Rafael Custódio, as consequências quase nulas da audiência de custódia no que se refere à tortura e maus-tratos do preso, tem feito o temor dos policiais desaparecer ao perceber que a audiência está avalizando a violência das ruas.

A inversão dos objetivos

O jornalista Bruno Paes Manso, pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV-USP), refletiu sobre a rápida assimilação e incorporação das audiências de custódia pela engrenagem do encarceramento em massa, em que o objetivo inicial era justamente coibir os excessos. “Fiquei muito assustado com a eficiência e a naturalidade com que isso foi feito”, afirmou.

Para ele, um dos méritos da pesquisa é mostrar o papel do Judiciário e do Ministério Público na engrenagem do aprisionamento em massa. O pesquisador ponderou que, em outras épocas, a tortura era usada como instrumento de investigação e hoje é para a confissão do suspeito. Bruno Manso também enfatizou a “fé pública” do depoimento do policial, que costuma ser o único elemento para condenar o acusado. “É uma engrenagem respaldada pela ideia de que para viver num mundo mais seguro, é preciso encarcerar certa parcela da população”, disse, acrescentando que a sociedade, por se sentir vulnerável, quer mais desse “remédio veneno” sem perceber que é esse remédio que pode matar.

“Vivemos o desafio de tentar mostrar como a salvação baseada no sistema Judiciário e na polícia repressiva vem dando errado. Já temos elementos suficientes para mostrar que não está dando certo, não só elementos conceituais, mas empíricos”, disse Bruno.

Consequências

A pesquisa foi divulgada na mesma semana em que as audiências de custódia completam dois anos em São Paulo. Advogada da Conectas, Vivian Calderoni fez questão de salientar o apoio da organização às audiências de custódia e disse que a pesquisa busca trazer elementos para aperfeiçoa-la. “Nosso intuito é provocar uma mudança real e concreta”, afirmou.

Segundo a Conectas, diante da conclusão de que os operadores do sistema de Justiça não cumprem as normas e disposições nacionais e internacionais de prevenção e combate à tortura e maus-tratos, a organização interpôs representações à Corregedoria do Tribunal de Justiça de São Paulo, à Procuradoria-Geral de Justiça e ao Conselho Superior da Defensoria Pública, com o objetivo de “demandar a apuração das condutas evidenciadas pela pesquisa e a criação de protocolos que garantam a efetividade desse instrumento no combate à violência policial”.   

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