As conquistas de Maria da Penha

A lei inspirada em sua luta fez 5 anos. Para ela, a sociedade evoluiu, mas precisa pressionar o poder público para que as pessoas sejam esclarecidas e encorajadas

Batalha de Maria da Penha tornou-se uma referência. (Foto: Jr. Panela)

De acordo com a última pesquisa feita pelo instituto Ipsos, 94% da população sabe que existe a Lei Maria da Penha. Pode não ter conhecimen-to de como funciona, mas sabe que é para defender a mulher
Criada em 7 de agosto de 2006, a Lei 11.340, ou simplesmente Lei Maria da Penha, é uma das mais lembradas no país. Pesquisas recentes apuraram que mais de 90% dos entrevistados a conhecem ao menos superficialmente. Conjunto de medidas para assegurar à mulher o direito à integridade física, sexual, psíquica e moral, a legislação tem alguns de seus artigos contestados.

Para alguns juristas, fere o princípio da isonomia, por exemplo, ao estabelecer que a mulher disponha de mais meios de proteção e de punição contra o agressor. Em cinco anos, foram criados 104 equipamentos públicos em 60 municípios de 23 estados, como juizados e núcleos especializados ligados a promotorias. 

A luta pessoal de Maria da Penha Maia Fernandes, 60 anos, contra a violência do ex-marido (que a deixou paraplégica) agigantou-se para uma das mais importantes conquistas de cidadania dos últimos tempos. Nesta entrevista, ela fala sobre os avanços tímidos, porém consistentes, promovidos pela lei.

Em sua avaliação, o que mudou nesses cinco anos de vigência da Lei Maria da Penha?

As coisas têm mudado, mas não com a rapidez que a mulher deseja. Essa mudança, infelizmente, tem acontecido mais nas grandes cidades. As pequenas ainda não contam com políticas públicas que atendam de maneira satisfatória as mulheres. A maioria ainda necessita trabalhar mais essa questão, oferecer equipamentos, principalmente os Centros de Referência da Mulher e as Delegacias da Mulher. Com os centros, a mulher passou a ter onde se inteirar, esclarecer suas dúvidas e ficar mais segura para o caso de fazer a denúncia. E as delegacias têm de dar apoio. Quando existe uma delegacia especializada ou uma delegacia comum com equipe multidisciplinar preparada para atender uma vítima de violência, a mulher, que chega muito fragilizada, se sente encorajada a denunciar.

Por que esses serviços ainda não existem em todos os lugares?
Por falta de cobrança, de pressão. Nos locais onde o movimento da mulher é mais presente e articulado, o político cede à pressão da população que reivindica. Ouvi uma vez algo muito interessante: “O governo nunca concede, raramente concede, mas ele cede à pressão da sociedade”. E nesse momento a política pública é criada. Nas grandes cidades, principalmente nas capitais, há instituições que se articulam e agilizam o processo de implantação de mecanismos que permitam a aplicação da lei. No pequeno município, muitas vezes não existe nem a delegacia, o Ministério Público não está presente. Então é necessário que o Conselho da Mulher daquele estado consiga a criação, nos pequenos municípios, dos equipamentos que trabalhem essa questão.

Também entre populações indígenas e quilombolas?
Exatamente. Para que mulheres de todas as regiões e etnias sejam atendidas. É necessário mostrar para o poder público que ele não está atento a essa questão, embora já saiba bem disso. E, na hora que a pressão vem, geralmente a política é criada. Aos poucos, a informação vai chegando a esses locais pela mídia, que tem um papel muito importante, pela igreja, por uma entidade, uma palestra, folhetos. Já concedi entrevista para revistas evangélicas que alcançam esses lugares. É preciso informar a mulher para despertar nela, se for vítima de violência, a possibilidade de sair dessa situação. 

Em muitas cidades as Delegacias da Mulher ainda não funcionam 24 horas por dia…
Há muitas reclamações de mulheres que vão à delegacia no fim de semana, quando estão mais vulneráveis à violência. Isso porque aumenta o convívio do casal, o problema da bebida, dos amigos, fatores que influenciam esse momento de atrito, de discórdia. Numa hora dessas, é muito importante que a mulher possa contar com um local para denunciar a violência que acaba de sofrer.

Maria da Penha agosto 2011 (foto:Antonio Crz/ABr)

É preciso informar a mulher para despertar nela, se for vítima de violência, a possibilidade de sair dessa situação 

As mulheres continuam escondendo que são vítimas de violência?
Elas foram criadas para manter as aparências, para manter a harmonia do lar, para não externar o que acontece entre quatro paredes e o que acontece de negativo em relação ao homem. E muitas ainda acreditam que, se apanharam, é porque alguma coisa fizeram para merecer. O homem, por sua vez, foi criado com a ideia de que é superior e a mulher lhe deve obediência. Enfim, um achando que é superior e outro que é inferior. A lei veio para mostrar que ambos são iguais, que não existe diferenciação de direitos nem de deveres. As estatísticas demonstram que, ano a ano, algo está mudando. De acordo com a última pesquisa feita pelo instituto Ipsos, 94% da população sabe que existe a Lei Maria da Penha. Pode não ter conhecimento de como funciona, mas sabe que é para defender a mulher. 

A que você atribui essa popularidade da lei?
Violência é uma realidade muito próxima da maioria das mulheres. E não são só elas que têm interesse em que essa lei funcione. Os homens também. A maioria deles não é de agressores e pensa na sua descendência, em filha, neta, sobrinha. Eles sabem que nenhuma delas está livre de sofrer violência doméstica, no relacionamento afetivo, num momento em que eles não estejam mais presentes para defendê-las. Se trabalharem pelo cumprimento da lei, sua descendência será beneficiada no futuro.

Como você vê a reação dos homens?
As pessoas conversam muito comigo. Uma vez, um motorista de táxi me disse: “Graças à sua lei, voltei a viver com a minha mulher”. Perguntei por que, e ele: “Ah, porque eu não estava respeitando; meu filho acabava nervoso quando eu voltava pra casa porque eu tinha bebido. Precisei depois levá-lo pra fazer um tratamento psicológico. Eu não escutava as considerações da minha mulher, e ela me denunciou. Quando cheguei na delegacia, eu escutei o que a delegada tinha para me dizer. E hoje sou outra pessoa graças à sua lei”. Nesse caso a lei não foi punitiva, e sim educativa. 
Tem mulheres que chegam e dizem assim: “Desde que meu filho foi preso, meu marido nunca mais levantou a mão pra mim”. Porque, no momento em que a polícia fez o flagrante, eles repensaram sua conduta. Quando o Estado cumpre o seu papel, a gente espera que as pessoas respeitem mais. Assim é uma lei.
Conversando com outro motorista, ele me perguntou: “A senhora é a mulher da lei? Ave Maria, mas é terrível essa lei, né?” Perguntei: “O senhor tem filha? E se a sua filha casasse e o marido batesse nela, o que o senhor faria?” “Em filha minha, homem nenhum bate.” “E se o senhor morrer, quem é que vai acudir sua filha?” Ele ficou sem resposta. E eu disse: “Então, é pra isso que a lei veio: para garantir que sua filha não apanhe de homem”. E ele concordou. Falta reflexão. 

Violência contra a mulher independe de classe social?
Sim. Como quem mais recorre às delegacias da Mulher são aquelas de baixa renda – as de classes mais favorecidas têm seus advogados –, tem-se a ideia de que é a pobre que sofre mais violência doméstica. Mas tanto quem bebe cachaça como quem bebe uísque, se cometeu violência, é agressor da mesma maneira. Muda apenas o tipo de bebida, mas no seu eu há presente a agressividade. E a presença do álcool intensifica isso. É o problema mais sério. Antes da lei, as mulheres denunciavam e tiravam a queixa depois porque o marido se comprometia a não mais agredir. Ele ficava um período legal e depois voltava a agredi-la, e ela voltava para denunciar. Hoje a denúncia não pode mais ser retirada. Então a reincidência é muito pequena nesses casos de relacionamento conjugal. Mas ainda é grande no caso de filhos e parentes próximos contra mães, principalmente por causa das drogas.

O fato de termos uma presidenta aumenta o respeito e a valorização da mulher, diminuindo­ a violência?
Eu acredito. Até porque quem está à frente da Secretaria de Políticas para as Mulheres (Iriny Lopes), é uma militante da causa, foi uma das relatoras da lei. Ela conhece o que precisa ser feito para fortalecer a lei, ou seja, sensibilizar e estimular a criação das políticas públicas.