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‘Descriminalizar porte de drogas pode reduzir massacre da população pobre e periférica’

Cartunista diz que país está 'mais do que pronto' para essa medida, cujo julgamento teve início hoje (19) e segue amanhã no STF

maurício morais/arquivo rba

“Quando você mantém cadeias lotadas com pessoas que estavam com um cigarro de maconha no bolso você está gerando mais formação, mais motivação criminosa”

São Paulo – A cartunista Laerte Coutinho acredita que o país poderá dar um passo fundamental para reduzir o massacre da população pobre e periférica pela polícia se o Supremo Tribunal Federal (STF) aprovar a descriminalização do porte de drogas para consumo pessoal, em julgamento que teve início hoje (19) e segue amanhã.

Indagado se acredita que o país está pronto para a descriminalização, ele afirma que “o Brasil não está pronto é para continuar sendo massacrado, não é uma questão de estar pronto, quer dizer, o que é necessário para estar pronto, maduro, quais condições? O fato é que a população brasileira está sendo massacrada por uma política de combate às drogas que penaliza uma parte dessa população. Não tem de esperar nada, o país já está mais do que pronto”.

Laerte também acredita que a medida, se aprovada, pode ajudar a reduzir a população carcerária, “além de uma série de fatores que são geradores de tensões, de criminalidade. Quando você mantém cadeias lotadas com pessoas que estavam com um cigarro de maconha no bolso você está gerando mais formação, mais motivação criminosa”.

Laerte falou também sobre as manifestações conservadoras do domingo (16) frente à chacina de Osasco e Barueri, que o motivou a publicar na página 2 do jornal Folha de S.Paulo de ontem (18) uma charge em que manifestantes tiram selfie com policiais violentos.

“Com isso, elas também estão se conectando com um argumento que eu vejo cada vez mais usado por aí, que é ‘no tempo da ditadura, quem apanhou, ou foi preso ou foi morto é porque estava fazendo merda’. Quem explicitou isso com todas as letras foi o Roger (guitarrista e líder da banda Ultraje a Rigor). Mas isso já vi dito várias vezes por aí. ‘Eu não estava fazendo merda, por isso, eu não tinha o que temer’. A ditadura é um problema só para quem se opõe a ela.”

Como você vê o julgamento da descriminalização do porte de drogas para consumo pessoal?

Bom, que o Supremo vá agora apreciar o assunto é ótimo, porque o Supremo tem funcionado inclusive como uma espécie de substituto do Poder Legislativo, que se furta a essas questões em função de acordos, alianças e outros recursos do jogo político, e tem deixado essa responsabilidade para o Judiciário. É uma pena porque essas coisas têm a ver com decisões que a sociedade toma por meio dos seus representantes. O que está havendo é um grande sumiço desses representantes. Vejo o julgamento como algo positivo.

Você acha que o país está maduro para descriminalizar o porte de drogas para uso próprio?

O Brasil não está pronto é para continuar sendo massacrado, não é uma questão de estar pronto, quer dizer, o que é necessário para estar pronto, maduro, quais condições? O fato é que a população brasileira está sendo massacrada por uma política de combate às drogas que penaliza uma parte dessa população. Não tem de esperar nada, o país já está mais do que pronto.

Até porque na prática a política de repressão é movida pelo preconceito contra pobres, negros e periféricos…

Agora, essa discussão tem de gerar também uma resposta positiva, não é liberar e pronto. Tem de ter critérios, atenção, não equivale a abandonar qualquer tipo de cuidado, é preciso investir, certamente vai exigir investimentos mais ou menos vultosos na área de saúde. A experiência internacional tem mostrado que isso dá certo, que diminui o uso mesmo, diminui a criminalidade.

Sabe-se até que é possível reduzir a população carcerária…

Reduz a população carcerária, e uma série de fatores que são geradores de tensões, de criminalidade. Quando você mantém cadeias lotadas com pessoas que estavam com um cigarro de maconha no bolso você está gerando mais formação, mais motivação criminosa.

E a campanha contra a proibição às drogas, da qual você participou, mas o governador Alckmin proibiu em São Paulo?

A campanha é contra a proibição das drogas, agora a consequência do fim da proibição envolve uma série de formulações que não estão fechadas. A nossa campanha é contra a proibição, agora, o que fazer em contraponto à proibição é outra coisa, tem a regulamentação, tem questões que têm a ver com saúde pública, tem questão de segurança, enfim, um monte de questões que não estão resolvidas ou indicadas na campanha. A campanha se limita a apontar a responsabilidade da proibição com uma técnica de criação de tensões sociais que não têm resposta, não é para ter resposta, a guerra contra as drogas não é para ser vencida. Ela é um fim em si mesmo.

O Brasil hoje é mais conservador do que progressista, como você vê o país nessa divisão?

Não é só o conservadorismo e o progressismo que estão na mesa, ou que são peças desse jogo. No campo do progressismo, por exemplo, as proposições e as disposições são muitas também, então, eu encontro expectativas em relação à luta política muito diversas, desde pessoas com grande dose de flexibilidade até o contrário disso. A gente encontra por aí todo tipo de gente, todo tipo de disposição, todo tipo de propósito. Esse negócio de considerar o bem e o mal é do tempo da ditadura, naquele tempo é que a gente achava que existia o bem e o mal, ou seja, quem estava a favor da ditadura era o mal e a gente que estava lutando contra era o bem.

O tempo se encarregou de mostrar que esse quadro era mais complexo, cheio de sutilezas. Ao nosso lado, havia pessoas conservadoras que eram muito dignas, respeitáveis e positivas. E ao mesmo tempo havia pessoas que se diziam revolucionárias ou radicais e tudo e não tinha escrúpulo, ou sei lá, não vou ficar aqui apontando nomes, nem nada, mas o que eu quero dizer é que existe essa complexidade toda.

Então, os campos em que o Brasil está dividido hoje são muito mais do que dois. O que se passa é que muitas vezes as configurações oferecem uma possibilidade de uma análise em que soa sumária. Agora, eu não posso fazer nada, quando eu estou produzindo uma charge eu não estou produzindo um ensaio alentado e meticuloso sobre a realidade, eu estou apontando com precisão e até com intensidade poética uma contradição, uma determinada tensão, e estou procurando com aquilo essa nova reflexão. É um fato as pessoas fazendo selfie ao lado da polícia. Com isso, elas estão querendo dizer várias coisas. Agora, o que está sendo dito com isso não está explícito naquele gesto, está implícito, quer dizer, a ideia de que a nossa manifestação não leva cacete da polícia. Com isso, elas também estão se conectando com um argumento que eu vejo cada vez mais usado por aí, que é “no tempo da ditadura, quem apanhou, ou foi preso ou foi morto é porque estava fazendo merda”. Quem explicitou isso com todas as letras foi o Roger (guitarrista e líder da banda Ultraje a Rigor). Mas isso já vi dito várias vezes por aí. Eu não estava fazendo merda, por isso, eu não tinha o que temer. A ditadura é um problema só para quem se opõe a ela.

Ao mesmo tempo essa candura em relação à polícia é uma visão irresponsável em relação aos problemas da polícia. Não estou dizendo que todo policial é violento, ou truculento, ou é corrupto, certamente dentro da corporação existe muita gente digna, profissionais competentes, sérios, honestos e tudo o mais. Agora, que a polícia de São Paulo está ligada ao mais alto índice do país de mortes em confronto, como eles chamam, é um fato também. Eu acho que é algo politicamente significativo você exigir a saída, a renúncia, o impeachment, seja lá o que está sendo pedido agora de uma presidenta eleita democraticamente, ao mesmo tempo que você é absolutamente leviano, não quero usar essa palavra porque o Aécio fodeu com ela….(risos)…inconsistente com o que está havendo na área da segurança, na área da violência urbana, a população sendo morta, há uma Justiça que está sendo, como chama?, que está sendo desprezada, insultada, humilhada, uma Justiça que está sendo transformada em pó de traque, na opinião de gente que acha que é isso aí que precisa ser feito, são bandidos, estão morrendo.

Está implícito que tem gente que acha que bandido bom é bandido morto..

Exatamente. A opinião pública encara a vítima civil da violência policial como supostamente um bandido. Quer dizer, em princípio é um bandido, sem julgamento, sem acareação, sem provas, sem coisa nenhuma, se a polícia matou é porque alguma estava fazendo. Então, esse tipo de pensamento se estabelece e não é só na cabeça da burguesia bem vivida, ou de gente que frequenta barzinho na Vila Madalena, é na própria periferia a ideia de associar a vitimação da pessoa à suspeita de conduta está presente, tanto que a pessoa fala “não, ele era trabalhador”. Como se não fosse trabalhador, se estivesse desempregado ou mesmo cometido um crime fosse mais natural levar um tiro da polícia. E não é assim. Essa naturalização da violência, muito bem exposta pela Eliane Brum em um artigo no El País, é uma das coisas que compõem o ideário desse povo que estava na Paulista. Claro que não são todas as pessoas iguais, ali você vai encontrar de tudo, inclusive democratas, mas não é o que as manifestações dizem enquanto uma voz, um fenômeno. O que elas dizem é de uma irracionalidade absurda. Quando as pessoas falam assim, “não eu fui à manifestação mas sou contra a intervenção militar”, a gente não sabe onde essa pessoa estava então, pois estava no meio de um monte de cartazes falando “Por favor, Exército, nos salve”, atrás de um monte de placas falando que “sonegação não é corrupção”, “Lula na cadeia”, esse tipo de coisa. A pessoa diz “eu sou democrata”, então, espera aí, então, não vá nessa porcaria.

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