São Paulo

Comissão Municipal da Verdade reafirma que Juscelino Kubitschek foi morto em atentado

Em sua última reunião de trabalho, a comissão apresentou também os pontos principais do relatório final, que deve ser apresentado em maio do ano que vem

Adriana Spaca/Brazil Photo Press/Folhapress

Vereador Natalini não aceita versão da CNV de que Juscelino morreu em acidente automobilístico

São Paulo – A Comissão Municipal da Verdade Vladimir Herzog, instalada na Câmara de Vereadores de São Paulo, vai reafirmar em seu relatório final que o ex-presidente da República Juscelino Kubitschek (1956-1960) sofreu um atentado, planejado pelo governo ditatorial (1964-1985), que levou à morte dele e do motorista Geraldo Ribeiro, na rodovia Presidente Dutra, que liga São Paulo ao Rio de Janeiro, em 22 de agosto de 1976. O fato ocorreu logo após saírem do Hotel Fazenda Villa-Forte, de propriedade do então brigadeiro Newton Junqueira Villa-Forte, um dos criadores do Serviço Nacional de Informações (SNI).

Na última reunião de trabalho, realizada na manhã de hoje (25), o presidente da comissão, vereador Gilberto Natalini (PV), voltou a refutar a tese de acidente de trânsito, defendida pela Comissão Nacional da Verdade (CNV), e garantiu que os indícios e depoimentos apontam para o assassinato. O relatório final do caso Kubitschek tem 107 itens, contra 90 do primeiro, divulgado em outubro do ano passado.

“A Comissão Nacional da Verdade simplesmente reavivou a investigação de 1976, feita por policiais civis do Rio de Janeiro a serviço da ditadura militar, acusando novamente o motorista de um ônibus de ter batido no automóvel do ex-presidente”, protestou Natalini.

O motorista referido é Josias Nunes de Oliveira, que trabalhava na Viação Cometa e foi acusado pela ditadura de ter colidido contra a lateral traseira do veículo de Juscelino, fazendo-o cruzar a rodovia e bater de frente contra um caminhão que ia para São Paulo, no atual quilômetro 328 da Via Dutra, na altura do município de Resende (RJ).

A CNV não ouviu Oliveira. “Como condenar uma pessoa sem ouvi-la?”, questionou Natalini. A comissão municipal ouviu, além do motorista, o médico Célio Benedito Beltrami e o advogado Paulo Oliver, passageiros do ônibus conduzido por Oliveira. Todos negaram que tenha ocorrido colisão entre os veículos.

O relatório traz ainda relatos de que o motorista de Juscelino estava desacordado no momento da batida, de que houve “clarões” sobre o veículo momentos antes da perda do controle do carro e de que o local foi cercado por agentes da ditadura para evitar que os corpos e o carro fossem fotografados por jornalistas, enquanto alteravam a cena do ocorrido.

“Há duas fotos periciais da lateral traseira do carro. Uma do momento do acidente, em que não há amassado algum, e outra do dia seguinte, em que há uma marca forjada de colisão”, destacou Natalini.

O documento também conta com depoimentos dos jornalistas Carlos Heytor Cony e Ivan Bezerra de Barros, que investigaram o caso à época, e Tânia Fusco, que produziu reportagens sobre o assunto dez anos depois e sofreu ameaças telefônicas.

Há também diversas contestações de laudos, como o de investigações realizadas no veículo de Juscelino em 1996 que trazia um número serial de motor diferente do documento original do veículo. Na época, o caso foi reaberto a pedido do ex-secretário do ex-presidente, Serafim Jardim, que acompanha a questão há 38 anos e acredita na tese do assassinato.

Ainda há o relato do perito criminal Alberto Carlos de Minas, que disse à comissão ter sido impedido de fotografar o crânio de Geraldo Ribeiro por policiais que estavam no Cemitério da Saudade, em Belo Horizonte (MG), em 14 de agosto de 1996, durante os trabalhos de exumação da ossada do motorista de Juscelino Kubitschek. Minas afirmou que viu um furo no crânio de Ribeiro, com características de buraco provocado por projétil de arma de fogo.

“Não tem problema haver duas conclusões. O que contestamos é a forma como a CNV chegou à dela. Nada desses itens relatados a comissão nacional levou em consideração. Por isso mantemos nossa convicção de que Juscelino Kubitschek foi assassinado”, afirmou Natalini, que considera a posição da CNV uma tentativa de provar que a comissão não é revanchista, já que não responsabiliza a ditadura pela morte do ex-presidente.

Questionada, a CNV apenas informou que não comenta o relatório do caso JK da Comissão Vladimir Herzog.

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Conclusão dos trabalhos

O relatório final da Comissão Municipal da Verdade Vladimir Herzog só deve ficar pronto em maio do ano que vem. No entanto, Natalini adiantou os pontos principais que devem compor o relatório, que embora não tenha caráter de denúncia, tem o intuito de esclarecer a sociedade sobre os fatos ocorridos durante a ditadura. “São muitos detalhes, horas e horas de depoimentos em vídeo e áudio, que vão demandar um tempo para ser sintetizados”, explicou.

Um dos destaques será o relato do coronel reformado do Exército Erimá Pinheiro Moreira de que o então general do 2º exército Amaury Kruel foi subornado pelo ex-presidente da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) Raphael de Souza Noschese com US$ 1,2 milhão para se voltar contra o ex-presidente João Goulart, o Jango, deposto pelo golpe de estado em 1º de abril de 1964.

Kruel era considerado legalista. Foi ministro da Guerra de Jango e designado comandante do 2º exército, em São Paulo, justamente por ser considerado fiel a ele.

“Essa é uma das formas como o dinheiro civil financiou e sustentou o golpe. Kruel era legalista, mas virou golpista após receber o dinheiro”, explicou Natalini. Outro militar reformado, o ex-coronel Darci Rodrigues, confirmou a história.

Além disso, os relatos da organização financeira ajudam a esclarecer parte da cadeia de comando da ditadura em São Paulo, o que também será detalhado no documento final.

Outro ponto importante será a recomendação para o Serviço Funerário Municipal e o Instituto Médico Legal (estadual) evitarem o sepultamento de pessoas que possuem identificação como indigentes.

“Fomos retomar as investigações da vala clandestina do cemitério Dom Bosco, no distrito de Perus, e descobrimos que ainda hoje as pessoas são enterradas sem qualquer identificação simplesmente por não terem sido reclamadas por familiares. Uma prática da ditadura que persevera nos dias de hoje”, lamentou Natalini.

A proposta é que seja elaborada uma legislação para garantir que sejam colhidos material genético, impressões digitais e fotografias de todas as pessoas sepultadas nessas condições para facilitar a identificação em caso de busca pela família.

Outra recomendação que será proposta no relatório final é que a sede do extinto Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna (DOICodi) de São Paulo, na rua Tutoia, na zona sul da capital paulista, vire um memorial das vítimas da ditadura. Até hoje, funciona no local a 36ª Delegacia de Polícia. “Para quem passou por ali e sabe o que foi aquilo, que sofreu naquele lugar, é muito importante”, defendeu Natalini.

Em janeiro deste ano, o Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo (Condephaat) efetuou o tombamento do prédio, considerado patrimônio histórico.

A perseguição a sindicatos, estudantes, religiosos de matriz africana e ativistas moradores da região do M’Boi Mirim, na zona sul de São Paulo, onde foi morto o metalúrgico Santo Dias da Silva, também serão detalhadas no documento final.

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