Contos de B.Kucinski são metáfora de si mesmo e dos espinhos da nossa história

Primeiro livro de ficção de um dos mais experientes e respeitados jornalistas do Brasil tem lançamentos nesta quinta-feira (27) e na segunda (31), em São Paulo

(Foto: Paulo Pepe)

São Paulo – No documentário Utopia e Barbárie (2010), o diretor Silvio Tendler faz um apanhado dos acontecimentos do mundo nas últimas seis décadas e sugere uma reflexão sobre o potencial criativo e destrutivo do ser humano. Um dos fenômenos desse período é a Guerra Fria, que no Brasil provocou seus maiores estragos a partir do golpe de 1964. A perseguição a opositores pelo regime instalado fez 358 vítimas, das quais 138 estão ainda desaparecidas.

A propósito da angústia da busca por informações que levassem ao destino de sua irmã Ana Rosa, o jornalista Bernardo Kucinski dá, no filme de Tendler, o seguinte depoimento: “Todos os contatos são válidos, desde que o objetivo seja descobrir onde ela está. Você fala com amigo de general, cunhada de torturador, amante do Fleury, tudo… até que um dia eu cansei. Você cansa e fica com a culpa dentro de você”.

Assista no link abaixo:

Ana, professora da Faculdade de Química da USP, era casada com o dirigente da Ação Libertadora Nacional (ALN) Wilson Silva – e ambos desapareceram desde 22 de abril de 1974. Ao admitir a perenidade da dor e da culpa que carrega por não ter conseguido até hoje descobrir o que foi feito do casal, Kucinski assim define o gesto de remeter a história a K., seu primeiro livro de contos: “Estava tudo aqui dentro e eu tinha de descarregar”. Nessa reconstituição, o autor junta cacos de realidade a arranjos imaginários. Embaralha sensações de angústia e a persistência do pai na busca da filha com seus próprios passos em direção a esse abismo sem fim.

Se nem sempre saberá exatamente quando está diante de um fragmento real ou ficcional, o leitor se sentirá o tempo todo diante de um contundente e humano apanhado histórico literário sobre o período mais tenebroso da história do país: “É autobiográfico, mas não é. Tem muita coisa factual, e muita coisa inventada. Foi uma parede que eu montei ao meu gosto, mas os tijolinhos são todos factuais, entende? A parede toda é como se fosse uma metáfora. Coloquei tudo no personagem do meu pai, mas, na verdade, metade daquilo fui eu quem vivi”.

O livro K. tem dois lançamentos programados
em São Paulo pela Editora Expressão Popular

    • Dia 27 de outubro, 19h30, na Livraria Expressão Popular, com debate. 

Rua Abolição, 201, Bela Vista, São Paulo

    • Dia 31 de outubro,19h, no bar Canto Madalena. 

Rua Medeiros de Albuquerque 471, Vila Madalena, São Paulo

A editora vende também pelo site: www.expressaopopular.com.br (R$ 15)

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Em que medida mexeu com sua vida o fato ter procurado muito por sua irmã, desaparecida no regime militar, e não a ter encontrado?

São etapas. Você passa por etapas em que você realmente está querendo salvar uma pessoa da sua família, desesperado. Tem uma etapa em que você já começa a duvidar, mas continua. É um processo muito diferente de quando matam uma pessoa, por exemplo. É um outro processo de angústia. O cara fica procurando, se perguntando, porque também não sabe o quê, como e que dia aconteceu. Você começa a descobrir um monte de coisas, começa a procurar amigos, desconhecidos que alguém indicou, começa a perceber essa rede de informantes. E até gente que ainda tripudia. O livro mostra isso. Outro dia uma mulher telefonou para o meu filho e disse: “Eu estou chegando do Canadá. Estava em uma mesa conversando em português e apareceu uma senhora que disse que se chamava Ana Rosa Kucinski…” Tudo mentira. Comecei a pensar: “Porra, por que isso?” Aí eu descobri. Tinha saído aquela campanha do governo que tem uma artista que personifica a minha irmã – uma coisa meio dramática – e eles já começaram a se mexer. (A “Campanha pela Memória e pela Verdade” era da OAB/RJ e a atriz é Eliane Giardini.

O filme que lembra o desaparecimento de Ana Rosa Kucinski pode ser visto a seguir

Ainda hoje mexem com isso?

É. Torturam as famílias.

São pessoas ligadas ao regime?

Quem mais pode ser? E a mulher deixou o telefone, o nome dela… Tudo fajuto. Isso foi agora, em outubro do ano passado. Não é incrível? É inacreditável. Eles, de alguma maneira, se articulam. Tem um grupo de militares no Rio Grande do Sul que se reúne até hoje, tudo golpista, filho da puta – eu tenho até o boletim deles, “órgão Informativo da Turma Avaí”. Essa Turma Avaí tem sua origem voltada contra se descobrir o que aconteceu. Foi um ‘milico’ que me deu esse panfleto.

Como era a relação com seu pai, que procurava a filha?

Em 1974 eu estava na Inglaterra. Estava para voltar para o Brasil dali a alguns meses. E o meu pai aparece de repente, todo perturbado e conta que ela tinha desaparecido. Eu era correspondente da Gazeta Mercantil em Londres e voltei para o jornal já com essa situação. Lá, eles me ajudaram, mexeram os pauzinhos.

Nessa época ainda era dirigido pela família do Herbert Levy?

Era, mas foi o Miller (Roberto Miller, editor-chefe) quem falou com o Golbery (do Couto e Silva, chefe da Casa Civil do governo do general Ernesto Geisel). Logo eu percebi que uma coisa muito escabrosa tinha acontecido. Eu conto os episódios sempre de forma literária. Teve um caso de uma amiga minha que trabalhou na mesma escola que a irmã de um desses filhos da puta metidos nesse esquema.

A irmã conseguiu falar com o cara e ele disse: “Ah, sim, eu vou ver”. Ele já sabia que ela tinha sido presa. No dia seguinte, o cara liga todo apavorado dizendo: “Foi um engano, nunca ouvimos falar”. Três ou quatro vezes aconteceram coisas muito parecidas. Você percebia que era uma coisa escabrosa. Fui ao QG do 2º Exército, ao Rio de Janeiro. Quando comecei a encher muito o saco deles, começaram a falar: “Vai falar com o comandante. Ele vai te receber”. Fui, falei com o cara, tudo encenação, fingimento. Meu irmão mexeu muito também. Ele tinha um amigo que tinha contatos no departamento de estado, e foi o único lugar de onde veio, uma vez, uma informação de que eles tinham sido presos, mas não conseguiam saber mais nada.

O casal? Sua irmã e seu cunhado?

Do Wilson, então, nem falavam nada. Da minha irmã ainda falaram. Ele chegou a dizer que minha irmã estava viva… Não adiantava nada. Falei com um cara da CIA uma vez aqui em São Paulo. Aí você vai descobrindo que não é um processo igual a quando matam o cara e entregam o corpo – o que já é uma tragédia. É uma coisa diferente.

Meses e anos depois você fica se culpando. Você não sabe o que aconteceu, que dia foi; se você, naquele dia, tivesse feito algo, não teria acontecido… Nessa época eu vim duas vezes ao Brasil. Uma para fazer um filme com a BBC no Amazonas, em 1972; e, mais para frente, para uma pesquisa de campo para uma entidade de defesa do consumidor. E aí eu encontrei com a minha irmã. Tem um encontro que eu sempre lembro: ela estava meio correndo, depois entrou no carro e foi embora. E eu fiquei meio assim… se tivesse me dado conta – entendeu? Mas você não se dá conta na hora.

Você não tinha ideia do ambiente em que ela estava vivendo?

Era tudo muito complicado. E depois teve um aspecto, que é até perverso, ela vivia me dizendo para tomar cuidado. Tinha de ser o contrário! Porque eu era jornalista, muito conhecido, de um jornal de oposição. E eu vestia a camiseta de jornalista. Botava a cara para quebrar. Eu me protegia com esse negócio de ser jornalista. Ela tinha informações de lá, então ela é que vinha me advertir em vez de eu adverti-la. Isso foi terrível.

Ela militava em alguma organização?

O Wilson era da ALN. É uma coisa que eu nunca vou saber. Ela era militante, mas eu nunca vou saber se era por solidariedade ao companheiro, se ele tentava compartimentar, protegê-la, ou ao contrário, estimulava. Como isso se deu, eu nunca vou saber. O Wilson era da cúpula, vinha depois do Joaquim Câmara, talvez tivesse mais um e depois ele. Era um sujeito extremamente discreto. Eles tinham uma vida legal normal. Ela trabalhava na USP, ele numa empresa, não davam bandeira, ninguém sabia o codinome dele. Eu só fiquei sabendo depois, através de um cara do Partidão. Eu não sabia da atividade dele… Na verdade eu sabia, devia ter desconfiado, porque uma vez o cara me deu uma maleta para guardar e era uma coisa importante aquela maleta. Tinha essas coisas… O Wilson foi meu colega de universidade.

Ana Rosa dava aula na Química da USP?

Ela era da Química, professora. Ele estudou comigo na Física. Fizemos até algumas coisas juntos. Ele era organizado. Eu era assim, só ajudava todo mundo. Eu tentei entrar na Polop (Política Operária, organização de esquerda oriunda de uma ala do antigo PSB) e não me aceitaram. Se tivessem aceitado, eu não estaria vivo hoje, provavelmente. Mas eles acharam que eu não tinha preparo o suficiente, não deu certo. Fiz algumas coisas com o Wilson antes de ir para a Inglaterra. Montamos uma exposição sobre os 30 anos da Guerra Civil Espanhola, no prédio da Rua Maria Antonia. Eu era apaixonado pelo assunto e ele também. Uma vez ele me convocou para roubar os mimeógrafos num grêmio. Um roubava do outro (risos) – um grêmio estudantil estava na mão da AP (Ação Popular, outra organização de esquerda) e era dissidência, então ia lá e pegava. Mas eu não sabia que ele namorava a minha irmã. E provavelmente nessa época não namorava. Era tudo secreto, clandestino.

O trabalho do dom Paulo Arns, do pessoal do Tortura Nunca Mais, não chegou a alcançar alguma informação relevante?

O dom Paulo se mexeu muito. Hoje eu sei, pelo livro da Maria Victoria Benevides (Fé na Luta), que ele fez muito mais do que eu imaginava. Ele realmente foi um sujeito que comprou essa briga grande. Ele cobrou do Golbery, ficou bravo várias vezes. Mas não adiantava. Inclusive a Maria Victoria disse que meu pai ficou amigo dele. O meu pai impressionou muito ele porque era um velho, já tinha perdido a mulher, os filhos fora. Ele ia lá na cúria e ficou amigo do dom Paulo. Ele, que detestava rabino, padre de qualquer tipo.

O seu pai detestava rabino, padre e lideranças religiosas? Ele não era um judeu praticante?

Ele era de uma geração na Polônia, influenciada pelo Iluminismo, que absorve essa concepção moderna da vida e da política, principalmente os ideais socialistas que estavam muito fortes na Europa Oriental na época. E eles entram em choque com a tradição judaica e renegam a tradição judaica baseada na religião. Essa juventude se rebela. Ser contra a religião é criar a identidade, uma coisa que fica para sempre. Eles desafiavam, comiam sanduíche de presunto, tudo o que fosse para desafiar, faziam.

Isaac Deutscher, que escreveu a biografia do Trotski, conta um pouco esse episódio, que a turma saía e ia comer sanduíche de presunto na frente daqueles velhinhos barbudos só pra encher o saco. Meu pai era assim e eu herdei isso dele, o meu anticlericalismo vem dele. Então tem esse aspecto paradoxal: no fim, a Igreja católica foi a única que realmente se mexeu, de não fazer só por fazer. Eles fizeram tudo o que puderam.

De certa forma, eles tinham uma dívida porque também apoiaram o golpe.

Se fosse só essa dívida… Eles fizeram a Inquisição, ficaram 2.000 anos acusando o povo judeu de ter matado o filho de Deus. Você quer uma acusação pior do que essa? Eles têm muita culpa no cartório. Agora, esse livro (K.) foi uma coisa curiosa porque eu estava pensando em um dia escrever alguma coisa, mas ficava só no pensamento. Aí eu fiz a viagem para Israel e eu fiz uma novela policial. Saiu direto, redondinha. Até hoje não foi publicada, mas pensei: “Bom, acho que eu pego o jeito”.

E resolveu investir na “ficção”.

Aí escrevi um episódio, saiu direto. Depois outro, outro e outro. Ia saindo. Tive de começar a inventar um pouco porque tinha episódio que não tinha como eu contar. Por exemplo, um episódio em que eu fui para o Rio falar com aquele filho da puta, o Amílcar (Lobo, tenente, médico e psicanalista), que assistia às torturas, que depois de um certo tempo resolveu ajudar as famílias. Esse episódio não tinha como eu contar, tive de inventar uma história e encaixar.

Então comecei a inventar situações, juntar. No fim foi um tipo de descarrego. Estava tudo aqui dentro e eu tinha de descarregar. Por isso é difícil definir esse livro. É autobiográfico mas não é. Tem muita coisa factual, e muita coisa inventada. Foi uma parede que eu montei ao meu gosto, mas os tijolinhos são todos factuais, entende? A parede toda é como se fosse uma metáfora. Eu coloquei tudo no personagem do meu pai, mas, na verdade, metade daquilo foi tudo eu que vivi.

E com relação a essa luta para que os responsáveis pela mortes, desaparecimentos e pela tortura sejam responsabilizados e a eficácia da Comissão da Verdade, você tem esperanças?

Nenhuma esperança. Pelo pouco que eu li, não acredito. Parece que já foi esvaziada, o objetivo é meio limitado.

É uma dívida que o país não vai pagar?

Agora que você perguntou, me ocorreu: eles vão esperar todos esses caras morrerem, e talvez até os filhos, para depois mexerem. O sistema se metamorfoseou, os que eram da ditadura viraram democratas, mas muito deles são as mesmas pessoas. O Sarney (José Sarney, presidente do Senado) é o símbolo disso. É um problema, porque fica um espinho.

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