Depoimento de Ustra é vitória das liberdades democráticas sobre a tortura

Se houvesse revanchismo, Ustra teria de depor pendurado em um pau-de-arara recebendo choques elétricos. Mas seu depoimento à Comissão da Verdade respeitou todos os seus direitos

Wilson Dias/ABr

O ex-comandante do aparelho repressor da ditadura, Brilhante Ustra, durante depoimento que confirmou o avanço das liberdades democráticas no Brasil

É pena que canais de TV não deem à Comissão da Verdade pelo menos parte do espaço que deram na cobertura do julgamento do “mensalão”. Há sessões que são verdadeiras lições da história e aulas sobre a importância das liberdades democráticas.

Nota-se certa discrição e direcionamento na cobertura do tema pelas Organizações Globo, o que traz fortes indícios de rabo-preso com os algozes da época. Afinal, que jornalista não gostaria de obter revelações inéditas, daquelas que resultam em grandes reportagens que entram para a história?

Na sexta-feira (10), o ex-comandante do DOI-Codi de São Paulo Brilhante Ustra depôs na Comissão da Verdade (que apura atos obscuros da história que tenham sido cometidos pelo Estado brasileiro durante a ditadura).

Só o simbolismo daquela cena já valeu a pena porque, nos dias de hoje, o coronel pôde depor acompanhado de seu advogado, foi com um habeas-corpus que lhe permitia não responder as perguntas que não quisesse, pôde dizer o que quis e se calar quando quis, a imprensa pode acompanhar (se os canais de notícias, como Globonews, Bandnews e RecordNews quisessem transmitir ao vivo, poderiam) e, por fim, a sessão foi transmitida pela Internet. Ustra, além disso, teve seus direitos e sua integridade física respeitadas.

Quanto contraste, se comparado com os depoimentos que eram colhidos no DOI-Codi sob o comando de Ustra, quando o depoente (muitas vezes sequestrado na calada da noite, sem ordem de prisão oficial) não tinha direito a advogado, nem a habeas-corpus, e era submetido a interrogatórios sob tortura (ou ameaça de tortura), na clandestinidade dos porões, o que levou muitos à morte quando o suplício ultrapassou o limite da resistência física.

Só esse contraste já mostra a supremacia das liberdades democráticas e do estado de direito, e desmonta teses de revanchismo. Se houvesse revanchismo, Ustra teria de depor pendurado em um pau-de-arara recebendo choques elétricos e outras sevícias. Obviamente que isso seria inaceitável, pois seria se igualar às práticas que condenamos.

Semblante da morte

Alguns agentes da ditadura, que participaram da repressão resolveram contar o que sabem. Não foi o caso de Ustra. Manteve sua postura de confirmar apenas a versão oficial da ditadura. Se recusou a responder perguntas que poderiam reconstituir os acontecimentos sobre a morte de alguns presos políticos. O silêncio foi comprometedor, porque se tivessem morrido em combate não haveria motivo para esconder os acontecimentos.

Mesmo que deixemos de lado, por um instante, o aspecto político de haver uma ditadura, seria compreensível que houvesse baixas em confrontos armados. O que nem as leis da ditadura autorizavam era execução e tortura sob custódia. Mesmo os mais duros regimes, para executar presos precisam de uma sentença formal e pública de condenação à pena de morte e tem que entregar os corpos às famílias. E é isso que torna Brilhante Ustra uma figura sombria, com o semblante da morte.

Voltando ao aspecto político, não é verdade que fosse preciso uma ditadura para enfrentar pequenos grupos de guerrilheiros, pois no início dos anos 70 até os Estados Unidos haviam centenas destes pequenos grupos armados (o que ganhou maior notoriedade foi o Exército Simbioses de Libertação, ao sequestrar a herdeira milionária Patty Hearst, que acabou se tornando integrante do grupo).

E lá ninguém fechou o regime democrático, enfrentando o problema com a Constituição e as leis vigentes. Mantiveram as liberdades existentes, inclusive o Partido Comunista (apesar de pouco expressivo nos Estados Unidos) funcionava legalmente. Liberdade de expressão, de organização, e de manifestação pacífica não foi tratada como crime lá, como foi aqui (o que levou muitos rebeldes originalmente pacíficos a só encontrarem meios de resistir em grupos armados).

E grupos guerrilheiros lá que cometiam ações armadas, era tratados de acordo com o código penal, sem leis de exceção, e sem o Estado fazer ações clandestinas. Se o governo da ditadura era tão alinhado aos EUA, o qual tinham como modelo, por que não fizeram o mesmo?

Contradições

Apesar da postura de enfrentamento, o coronel caiu em contradições durante seu depoimento. A mais gritante foi uma que não convence nem seus pares.

Em um momento, Ustra confirmou que não eram feitas perícias sobre mortes nas ruas. Os corpos eram retirados e levados para o DOI-Codi e depois para o Instituto Médico Legal (IML), segundo suas palavras. O coronel apresentou como justificativa que a guerrilha tinha gente fazendo cobertura que matava os agentes da ditadura caso ficassem vigiando o corpo. Uma versão impossível de acreditar, pelos motivos:

1) Se o corpo no chão servisse para atrair guerrilheiros, é claro que seriam usados como chamariz para prender ou matar os demais guerrilheiros nos arredores.

2) Se o corpo estivesse na linha de fogo inimiga, retirá-lo do local é que exporia os agentes. O procedimento tecnicamente correto seria fazer uma varredura do local e das ruas vizinhas, para fazer perícia com segurança e só então retirar o corpo.

3) Não há qualquer motivo dentro da ordem legal e natural das coisas que justifique um morto ser levado ao DOI-Codi antes, e não ir diretamente para o IML.

Provocações

Ustra tentou se defender atacando. Calculou que ao invocar o nome da presidenta Dilma como ex-militante de organizações guerrilheiras de resistência à ditadura, desviaria o foco de seu depoimento. De fato, sua declaração pautou o jornal Estadão e o “Jornal Nacional”, porque fazem péssimo jornalismo, ignorando os fatos abaixo.

A presidenta Dilma já respondeu processo na Justiça Militar na época da ditadura, quando sua atuação já foi investigada à exaustão. Já depôs e foi inclusive torturada para arrancarem informações. Dilma cumpriu pena como presa política, e foi solta saindo pela porta da frente da prisão em plena ditadura, ao final da pena. Ela não deve nada a ninguém. Quem deve muita coisa à nação brasileira, à história e às famílias dos mortos e desaparecidos em circunstâncias sinistras, é o coronel Brilhante Ustra.

Outra provocação que cai no vazio, foi quando Ustra disse que a ditadura e seus horrores foi implantada para combater outra ditadura, caso a presidenta e seus companheiros tivessem chegado ao poder. Pois bem, Dilma e vários ex-militantes daquelas organizações chegaram ao poder e a democracia está aí, em sua plenitude

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