Livro conta história da relação entre o rio e a cidade de Piracicaba

Rio ficou esquecido no período em que a indústria cresceu na região no século 20. Reversão do cenário demorou e esgotamento doméstico ainda mantém-se como desafio (Foto: Reprodução) Será lançado […]

Rio ficou esquecido no período em que a indústria cresceu na região no século 20. Reversão do cenário demorou e esgotamento doméstico ainda mantém-se como desafio (Foto: Reprodução)

Será lançado nesta terça-feira (17) o livro “Piracicaba, o rio e a cidade: ações de reaproximação”. A Publicação da prefeitura municipal e do Instituto de Pesquisas e Planejamento de Piracicaba traz uma série de artigos de especialistas contando a história da relação entre o rio e a cidade e as ações de reaproximação tomadas pela sociedade e pelo poder público ao longo dos últimos 40 anos. O lançamento ocorre às 19h, no Núcleo de Educação Ambiental no Parque do Mirante (antigo restaurante do Mirante).

A jornalista Sabrina Bologna e o arquiteto Estevam Otero, organizadores do livro ao lado da engenheira civil Maria Beatriz Silotto Dias de Souza, responderam por e-mail a perguntas do Desafios Urbanos.

Segundo os autores, a cidade foi fundada em 1767 na barra do rio Piracicaba no Tietê por uma expedição enviada de São Paulo para criar um entreposto de apoio e comunicação com a região do Mato Grosso. Com o passar do tempo, o desenvolvimento industrial levou à poluição do rio e a cidade se afastou dele, deixando a área degradada. O município fica a 160 quilômetros – e três pedágios – da capital paulista.

“Em princípios da década de 1970 essa relação atinge seu ponto mais baixo, com a intensa poluição das águas do rio, ocupação e degradação das margens, configurando barreiras intransponíveis ao acesso tanto físico quanto visual da população local. Foi a partir desse ponto crítico que a situação começou a mudar”, dizem os autores.

Foi aí que a sociedade de Piracicaba tomou a decisão de reconquistar aquele espaço e diversas ações foram realizadas pelo poder público nesse sentido, com medidas para limpar o rio, a desapropriação de áreas de indústrias e fazendas nas margens e sua transformação em parques e espaços culturais. “Os moradores locais não foram afetados, pois eram principalmente pescadores que permanecem por lá”, afirma Sabrina.

A história merece atenção. A relação com os rios já foi fundamental para a maioria das cidades erguidas em volta de cursos d’água. Com o tempo e por causa da falta de zelo e cuidado ambiental adequado, tornou-se um problema. Enchentes e poluição são o que vêm à mente quando se pensa nos rios paulistanos, por exemplo – coloque-se na conta Tietê, Pinheiros, Tamanduateí, Aricanduva, Pirajussara, entre outros.

Retomar e readequar esses espaços, tornando-os áreas de “respiro” em meio ao mar de concreto da capital seria um ganho enorme de qualidade de vida para a população – sem falar na diminuição dos problemas com desabrigados por enchentes. A cidade vê um rápido crescimento em função de sediar uma multinacional do setor sucroalcooleiro e ter uma montadora sul-coreana prestes a ser inaugurada. Guardadas as proporções, o exemplo de Piracicaba pode ser útil.

Confira a íntegra da entrevista:

Qual a importância do rio para o desenvolvimento da cidade?

Historicamente, há uma forte vinculação entre a constituição e desenvolvimento das cidades e os corpos d’água. A proximidade de rios e córregos era fundamental para o abastecimento para consumo de seres humanos e animais, irrigação, fonte de alimento e, em determinadas situações, para o aproveitamento do potencial hidráulico para a movimentação de mecanismos e maquinários. No caso brasileiro, os rios foram fundamentais como vias de comunicação e penetração no território, de modo que inúmeras povoações coloniais surgiram às margens de corpos d’água e sua comunicação se dava quase que unicamente por meio desses canais de deslocamento fluvial.

Piracicaba foi fundada em 1767 por uma expedição enviada da cidade de São Paulo com a finalidade específica de estabelecer uma povoação nas proximidades da barra do rio Piracicaba no Tietê, de modo a servir de entreposto de apoio e comunicação com a região do Mato Grosso. A partir de fins do século XIX, as várzeas dos rios passam a abrigar as instalações das primeiras fábricas da incipiente industrialização brasileira. Isso pode ser notado tanto numa cidade como São Paulo, onde as primeiras áreas industriais foram se localizar na várzea do Tamanduateí (Brás, Moóca) e do Tietê (Barra Funda), quanto em Piracicaba, onde o processo começou às margens do rio Piracicaba, próximo ao salto. É o caso da Tecelagem Boyes, do Engenho Central (usina de açúcar e álcool), olarias etc. Isso se devia à facilidade que esse locais permitiam para a captação de água e disposição de efluentes e, no caso piracicabano, no aproveitamento do potencial hidráulico para a geração de energia, que alimentava todo o processo fabril e, inclusive, abastecia a cidade.

Qual o impacto desse desenvolvimento para o rio, em termos de sustentabilidade?

No caso de Piracicaba, que é o objeto de estudo da publicação, a ocupação das margens com essas diversas atividades, sobretudo industriais, apesar do intenso desenvolvimento econômico que proporcionaram, acabaram por promover um progressivo afastamento da população em relação ao rio e suas margens. A Tecelagem Boyes e o Engenho Central eram, em 1907, a 13ª e a quarta mais importantes indústrias do interior paulista em valor de produção. Mas quanto mais crescia e se desenvolvia, mais a cidade se afastava de seu berço de fundação às margens do rio.

Relatos de fins do século XIX indicam que essa região, às margens do rio, onde a cidade havia sido fundada, constituía-se em periferia da cidade, mas, por isso mesmo, espaço de residência das camadas de baixa renda e de resistência das manifestações populares. Em princípios da década de 1970 essa relação atinge seu ponto mais baixo, com a intensa poluição das águas do rio, resultado da intensa urbanização e desenvolvimento industrial não só de Piracicaba, mas de diversos municípios situados na bacia, como Campinas, Americana etc., e que se situavam à montante do rio, ocupação e degradação das margens, configurando barreiras intransponíveis ao acesso tanto físico quanto visual da população local. Foi a partir desse ponto crítico que a situação começou a mudar.

Como foi a mudança?

Por um lado, as próprias restrições ambientais, derivadas de uma maior preocupação com a manutenção da qualidade da água e do ar, levaram a um maior controle sobre a poluição de origem industrial. Os efluentes provenientes dos esgotos domésticos tardaram mais a ser controlados, mas também se encontram numa trajetória de ajuste, mediante, sobretudo, à pressão do Ministério Público sobre as administrações municipais da bacia como um todo. Por outro lado, o poder público local passou a empreender uma série de intervenções com vistas à retomada das áreas à beira-rio em prol do interesse público, reapropriando-se delas por meio de ações em longo prazo e que buscaram conjugar a oferta de uma grande quantidade de equipamentos públicos voltados ao cotidiano da população local, em harmonia cada vez maior com a questão ambiental presente nesse contexto.

Quais as principais ações desenvolvidas pelo poder público ao longo dos anos para reaproximar a cidade do rio?

Desde o final do século XIX, existia um mirante particular, à margem direita do rio, defronte ao salto, para a contemplação deste. Esse mirante deu origem ao Parque do Mirante, implantado pela municipalidade em 1962, com pouco menos de 20 mil m² de área. Mas a grande inflexão no processo de afastamento do rio se deu a partir de 1973, quando o poder público municipal decide pela desapropriação de área de 23 hectares à margem esquerda, onde se localizavam algumas antigas olarias, com o intuito de implantar um grande parque público, efetivamente realizado 15 anos depois. Em 1989 a municipalidade promoveu a desapropriação da área do Engenho Central, já desativado e tombado pelo patrimônio histórico municipal, para implantação de um grande parque com enfoque cultural.

Em 2009, finalmente com o acordo acerca do valor da desapropriação, os grandes equipamentos culturais para os quais a área é vocacionada começaram a ser implantados. Nesse ínterim, a partir de 2001, deu-se início ao mais completo estudo para a requalificação das orlas urbanas do Piracicaba: o chamado Projeto Beira-Rio. O Beira-Rio parte de um visão sistêmica dessa relação entre a cidade e o rio, entendidos como um único par, indissociável. Para a elaboração da proposta, parte justamente da cultura local, da relação histórica entre a população e o corpo d’água, de sua identidade e apropriação, para a formulação de propostas que visavam a qualificação dessa relação. Todas essas ações passaram por momentos de idas e vindas, altos e baixos, mas já se encontravam incorporadas pela sociedade local, que seguiu impulsionando-as com vistas a que atingissem os objetivos. Analisando os projetos e propostas, pode-se observar que nem sempre se tinha clareza sobre os rumos a serem tomados nas intervenções na área; algumas propostas eram, inclusive, conflitantes. A única definição presente em todas as ações ao longo do tempo, e que orientou todas as propostas, era a de que essas áreas deveriam ser públicas e atender e corresponder ao interesse público.

Hoje, o rio ainda possui um papel relevante na vida de Piracicaba?

O rio é indissociável da própria identidade cultural local. É inimaginável conceber a cidade, hoje, sem o contexto oferecido pelo rio, suas margens e o salto à altura da área central do município. A mais importante manifestação cultural local resistiu, inclusive, aos momentos mais críticos da degradação do rio: a Festa do Divino Espírito Santo, realizada ininterruptamente desde 1826, tem lugar às margens do rio, e seu ponto alto é a procissão fluvial, o que lhe confere uma característica diferenciada. As ações empreendidas ao longo das últimas décadas para a requalificação da área permitiram que a população piracicabana retomasse os espaços à beira-rio; hoje, é um programa típico percorrer os espaços às margens do Piracicaba, especialmente aos fins de semana, para usufruir dos diversos equipamentos de lazer, esportivos, culturais ou gastronômicos aí localizados. Pode-se dizer que grande parte da população circula por esses espaços cotidianamente e, aos fins de semana, constitui-se num polo de atração regional.

Na sua opinião, essas experiências de Piracicaba podem ser reproduzidas em outras cidades – São Paulo, por exemplo?

O mais importante da experiência piracicabana reside no fato de que, num determinado momento, a sociedade local decidiu que uma outra relação e uma outra forma de ocupação dessas áreas era não só desejável como possível. Nisso reside o apoio a ações que não representaram pequeno impacto financeiro, nem pouco esforço da estrutura do poder público local. O fato de que hoje praticamente toda a orla do Piracicaba no trecho em que este cruza o centro da cidade consista de áreas públicas resulta desse desejo de mudança. Se atualmente temos um imenso parque contínuo de mais de 65 hectares – dos quais menos de dois o eram em 1972 –, isto se deve grandemente a um desejo coletivo de mudança. E isto é fundamental: essas áreas não estavam vazias, desocupadas, ou pertenciam ao patrimônio público à espera de destinação. Elas precisaram ser reconquistadas pela sociedade piracicabana, que nelas investiu, sobretudo ao longo dos últimos 40 anos, grande parte de seus recursos financeiros e humanos. Mas o ótimo resultado disso é visível na própria imagem que a cidade de Piracicaba tem de si e que projeta para fora: é impossível falar de Piracicaba sem ter em mente seu rio e a identidade cultural estabelecida por essa relação. Nesse sentido, cremos que a experiência piracicabana demonstra que é possível enfrentar uma realidade urbanística adversa e alterá-la.

A experiência de Piracicaba de reconquistar essas áreas que o “desenvolvimento” havia lhe tomado é resultado de uma decisão, uma vontade de alteração da realidade urbana a que parecia fadada a cumprir. Assim, cremos que, adequada às realidades urbanas de cada município, o enfrentamento de destinos que parecem inexoráveis, de baixa qualidade urbanística e degradação ambiental, podem, sim, ser enfrentados.

Leia também

Últimas notícias