São Paulo não precisa da Nova Luz, diz urbanista

Uma das iniciativas mais polêmicas da administração Gilberto Kassab, o projeto Nova Luz vem atraindo a atenção de ativistas, do meio acadêmico e demais interessados nos rumos do planejamento em […]

Uma das iniciativas mais polêmicas da administração Gilberto Kassab, o projeto Nova Luz vem atraindo a atenção de ativistas, do meio acadêmico e demais interessados nos rumos do planejamento em São Paulo. Um dos resultados desse interesse é o trabalho Outra Luz: Alternativas Urbanísticas para o Projeto Nova Luz, realizado pelo arquiteto e urbanista Vitor Coelho Nisida como Trabalho Final de Graduação na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP.

No texto, Nisida questiona o tipo de intervenção planejada pela Prefeitura para a área da Santa Ifigênia. Ao contar a história da ocupação e dar voz a seus atuais ocupantes, ele tenta descontruir a ideia de que o local necessite de uma revitalização, pelo menos nos termos que estão sendo propostos até agora. Para ele, quaisquer que sejam esses termos, o importante é que eles sejam discutidos com a população local. “As alternativas devem ser construídas coletivamente dentro de um processo amplo de discussão envolvendo o maior número de atores possível e contemplando as complexidades da região”, acredita.

O trabalho do urbanista pode ser acessado neste link. Abaixo, uma entrevista detalha alguns problemas e possível soluções do projeto Nova Luz.

DU – Qual sua motivação para pesquisar sobre a Nova Luz? Você acredita que esse tipo de intervenção seja algo que estará mais presente em São Paulo no futuro?

Vitos Coelho Nisida – Espero, sinceramente, que este tipo de projeto não se torne um paradigma de intervenção nem pra São Paulo e nem pra nenhuma outra cidade do país. Eu acredito que um projeto urbano para uma área consolidada, como a região da Santa Ifigênia, deve ser algo  construído coletivamente, só que a Nova Luz é um projeto impositivo desenhado sem participação alguma da população.

Uma proposta de requalificação do bairro precisa nascer das demandas e das questões colocadas por aqueles que vivem lá, ou porque moram ou porque trabalham. Esse Projeto Nova Luz, que propõe a demolição de mais da metade da superfície da região pra viabilizar a exploração comercial dos terrenos com novos empreendimentos, não é uma solução pra nenhum dos problemas do bairro. Pode perguntar para os moradores de lá, ou para seus comerciantes.

E um dos aspectos mais preocupantes é o modelo da intervenção, baseado na Concessão Urbanística. A prefeitura alega que é o instrumento ideal, para que a execução do projeto não onere os cofres públicos, mas a mesma prefeitura já reconheceu que vai ter que desembolsar milhões e milhões de reais pra “fechar a conta”. Isso fora o que já foi pago para o consórcio elaborar o projeto. 

Tudo isso para justificar esse absurdo de transferir prerrogativas do Estado para empresas. Elas podem desapropriar e demolir mais da metade dos terrenos do bairro, e o projeto chama isso de requalificação. O que se quer mesmo é eliminar o que existe para construir um novo bairro em cima, e não melhor o contexto urbano dado.

Qual a sua opinião sobre o projeto da Prefeitura para a ‘revitalização’ de Santa Ifigênia? São Paulo precisa desse tipo de intervenção?

Confesso que da primeira vez que vi a apresentação do projeto fiquei me perguntando: “Mas o que tem de errado? Ele é até bonito!” Só que quando você para pra pensar a quem serve e quem se beneficia com tudo que se propõe, você começa a enxergá-lo de uma maneira diferente. O Projeto Nova Luz é uma proposta pra substituir todo o contexto urbano, social, a dinâmica econômica a riqueza das relações estabelecidas, etc… 

Essa visão de que requalificar parte da cidade significa refazê-la por inteiro precisa ser superada. A região da Santa Ifigênia tem tantas qualidades e valores que deveriam ser utilizados em benefício do próprio bairro. Este termo “revitalização” também precisa ser superado: só se revitaliza o que não tem mais vida e o centro de São Paulo – o que inclui a Santa Ifigênia – é um lugar de uma vitalidade incomparável.

Não, São Paulo não precisa de um projeto como este!

Aliás, esse conceito de revitalização usado também é questionável. Como você enxerga a tentativa de mudar e gentrificar completamente aquela área?

O grande problema dessas transformações propostas é justamente este aspecto da gentrificação, ou, do processo de enobrecimento. As mudanças previstas no projeto não são feitas para aqueles que vivem na Santa Ifigênia, ou seja, para melhorar a vida cotidiana de quem mora ali, e sim são pensadas em detrimento de sua permanência. O entendimento geral da proposta é de que nada, ou quase nada, do que existe na região tem algum valor e que para recuperá-la é necessário mudar tudo. 

Se não fosse assim, a base do projeto Nova Luz seria qualificar de fato o que já existe em vez de propor a reconstrução de tantas áreas.

Além do óbvio deslocamento das atividades econômicas e dos moradores que deverão deixar seus imóveis a serem demolidos, a valorização imobiliária da região deve ainda responder por um processo progressivo de substituição da população atual, por uma outra que possa pagar os novos e mais altos preços de aluguel e do metro quadrado.

Esse é um problema da visão de que a degradação da área central está associada à população de baixa renda, como se os moradores mais pobres fossem os responsáveis pela condição de deterioração da área central. Aí, cria-se a ilusão de que a solução do problema deve passar eliminação destes e sua substituição por grupos de maior renda, quando, na verdade o que levou o centro ao estado em que se encontra hoje está diretamente vinculado às políticas públicas e às prioridades dos governos que deslocaram os seus investimentos, ao longo dos anos, para outras áreas da cidade, precarizando a região central.

Tendo em vista o exemplo da Nova Luz, São Paulo está ficando menos democrática?

Acho que dá pra usar o exemplo da Nova Luz, mas também o exemplo da Copa e das Olimpíadas, que, não só em SP, mas em outras cidades do Brasil, estão evidenciando a falta de espaços de participação popular e estruturas mais democráticas de decisão. 

Infelizmente não é só no projeto Nova Luz que a população sente falta de abertura para dar sua opinião, participar das decisões; ter voz de verdade. A gente tem visto que nos grandes projetos urbanos, e a Copa tem mobilizado muitos recursos públicos para eles, as propostas são impostas de cima pra baixo como se a solução apresentada fosse óbvia e consensual. 

Os conflitos e os impactos que as intervenções do grande projetos de mobilidade sequer são colocados pra população em geral e tampouco para aqueles que são diretamente afetados pelas obras. No caso da Nova Luz não é diferente.

O único espaço democrático que existe dentro do processo da Nova Luz é o Conselho Gestor da ZEIS da Santa Ifigênia: uma conquista que tem fortalecido a luta conjunta de moradores e comerciantes, mas que, ainda assim, tem suas restrições por compreender só uma parte do projeto Nova Luz. As audiências públicas feitas pela prefeitura e pelo consórcio responsável pelo projeto são meras formalidades de caráter informativo: não trazem a possibilidade da participação efetiva.

Na sua opinião, quais as alternativas para melhorar a qualidade de vida dos moradores da Santa Ifigênia?

Essa é a pergunta que eu fiquei me fazendo ao longo deste último ano no meu TFG (trabalho final de graduação) e, por mais que eu tenha levantado algumas possibilidades na proposta alternativa que eu coloco no trabalho, a única conclusão que pude tirar é que essas alternativas devem ser construídas coletivamente dentro de um processo amplo de discussão envolvendo o maior número de atores possível e contemplando as complexidades da região. Coisas que, na minha opinião, passam batido pelo projeto Nova Luz.

Outra certeza que eu tenho é que dá para pensar em uma outra forma de se  qualificar a Santa Ifigênia sem utilizar o instrumento da Concessão Urbanística. O Estado tem certa prerrogativas, que são de sua exclusividade porque uma de suas obrigações ée garantir o interesse público em cada uma de suas ações. Transferir poderes para terceiros (empresas, concessionárias, etc) é um absurdo, pois quem tem que operar melhorias na cidade é o poder público: essa é uma de suas atribuições.

Em termos de estratégias, acho que existem algumas possibilidades para que intervenções menos agressivas e destrutivas possam ser feitas aproveitando os vazios que existem na região. E para isso, levantei alguns instrumentos urbanísticos que poderiam ser acionados ou até mesmo alterados (como é o caso do zoneamento) para viabilizar mudanças que não excluam a população loca, mas integrem novos moradores e melhorem a dinâmica urbana local.

Acho que a escala e o programa funcional dos equipamentos culturais que o Estado e a Prefeitura vem propondo na região também deveriam ser diferentes. É claro que é importante consolidar a centralidade daquela região, mas atender as necessidades locais e respeitar suas diferenças em relação ao resto da cidade é uma estratégia importante para uma proposta que busca qualificar a região.