Documentário ‘Vou Rifar Meu Coração’ retrata o Brasil pela música brega

Cena de ‘Vou Rifar Meu Coração’, retrato de segmento da sociedade brasileira em documentário de Ana Rieper (©divulgação) Frentistas, prostitutas, donas de casa, domésticas, manicures e transformistas aparecem ao lado […]

Cena de ‘Vou Rifar Meu Coração’, retrato de segmento da sociedade brasileira em documentário de Ana Rieper (©divulgação)

Frentistas, prostitutas, donas de casa, domésticas, manicures e transformistas aparecem ao lado de ícones da música popular como Wando, Amado Batista, Agnaldo Timóteo, Odair José e Nelson Ned, no excelente documentário “Vou Rifar Meu Coração”, dirigido por Ana Rieper.

Premiado em festivais como In-Edit, o longa-metragem chega aos cinemas nessa sexta-feira (3), traçando um rico painel de um segmento da sociedade brasileira, por meio da música chamada de brega.

O filme recupera clássicos do cancioneiro popular, como “Moça”, de Wando; “Sonhos”, de Peninha; e “Princesa”, de Odair José, para refletir a respeito da presença desse gênero de canção na vida das pessoas consideradas mais simples do país, e também do preconceito que gira em torno desses artistas.

É exemplar, por exemplo, o depoimento de Agnaldo Timóteo que lembra que algumas canções só passaram a ser respeitadas pela intelectualidade quando foram gravadas por Maria Bethânia, caso de “Negue”, de Adelino Moreira e Enzo de Almeida Passos. Porém, essa característica não se restringe à produção da década de 1970 – caso das obras citadas – e demonstra como ela chegou à música sertaneja e ao forró, de “Morango do Nordeste”, de Walter de Afogados e Fernando Alves.

Nesse aspecto, o longa-metragem abre horizontes e parece estabelecer contato e ir além do ótimo livro “Eu Não Sou Cachorro Não – Música Popular Cafona e Ditadura Militar” (2005), de Paulo César Araújo, a respeito dessa mesma produção musical do Brasil, principalmente na década de 1970. Na obra, o autor investiga como esses artistas foram perseguidos pelo regime militar, enquanto precisavam lidar com o preconceito das classes A e B, dos grandes centros urbanos.

Mas as canções servem de pretexto também para um amplo retrato da realidade mais humilde do país, tratando de temas como amor, abandono, traição e infidelidade. É o caso do prefeito de uma cidade do interior do Nordeste que mantém duas relações amorosas, com a esposa e a amante, sendo que as duas sabem e aceitam, mesmo com muita dor, a infidelidade. Aqui o filme pode ser até acusado de machista, mas quem disse que esse não é um predicado ainda muito presente na realidade do país?

Uma das sequências mais polêmicas é aquela em que o cantor e compositor Lindomar Castilho, que ficou conhecido também por ter matado a esposa e cantora Eliane de Grammont, em 1981, afirma que tudo se justifica para um homem que descobre que está sendo traído. Não há exatamente um contraponto ao que ele afirma, mas, sim, uma canção que trata do amargor de ser traído, tema que inicia o filme com o ótimo depoimento do frentista de um posto de gasolina.

Com lindas imagens da natureza do interior do país e roteiro caprichado de Ana Rieper, “Vou Rifar Meu Coração” é um filme contagiante, com muitos momentos engraçados e divertidos, intercalados com outros ásperos, cruéis e melancólicos, que traça um painel bastante rico dos sentimentos comuns a muitos brasileiros, que sonham em viver um grande amor, e valoriza uma parte gigantesca do cancioneiro popular brasileiro. Lamenta-se a ausência de nomes como o do cantor e compositor José Augusto. Quem sabe ele não possa figurar numa continuação merecida para esse documentário.

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