Estreia de Filipe Catto traz novo brilho à MPB

Os primeiros acordes do tango “Gardênia Branca” são arrasadores. Quando uma voz andrógina interpreta os primeiros versos é impossível não parar para escutar e manter a sensação de estar diante […]

Os primeiros acordes do tango “Gardênia Branca” são arrasadores. Quando uma voz andrógina interpreta os primeiros versos é impossível não parar para escutar e manter a sensação de estar diante de algo muito especial. Exagero? Pois fique atento o quanto a voz de Filipe Catto soa limpa, sem exageros e gritos desnecessários, e a altura a que é capaz de chegar. Essa impressão é confirmada quando se descobre que a criação, que parece tão lapidada e fruto de alguma ótima pesquisa musical, é inédita e foi composta pelo próprio intérprete, em seu álbum de estreia, “Fôlego”.

Fôlego é realmente o que não falta nesse disco. A variedade é imensa. Há do jazz suingado “Johnny, Jack & Jameson”, cantada em inglês e em homenagem à cantora britânica Amy Winehouse, falecida no início do ano. Há influência da melhor Marisa Monte na delicada “Redoma”, marcada pelo mais rasgado romantismo: “Hoje eu cansei de saudade / E vou mandar te trazer / Nem que precisem mais de mil cavalos / Brancos pra te convencer”. O clima é marcado também pelos excelentes músicos Thiago Rabello (bateria), Adriano Grineberg (piano, harmônio e teclado), Fabá Gimenez (guitarras), Deco Telles (baixo), Gui Held (guitarra) e Paul Ralphes (percussão). Não foi à toa que o consagrado Dadi se juntou a essa turma.

O samba “Juro Por Deus” certamente seria gravado por Elis Regina, caso ela não tivesse falecido há praticamente três décadas, e é marcado por uma ironia fantástica, que contrasta com a força da interpretação: “E eu vou abrir a fenda até o meu umbigo / E eu vou dormir com / Aquele teu melhor amigo / E me mantar de ciúme de ti? / Ah! Por favor! / Se é pra morrer / Que morra você, meu amor”.

Se você resistiu até aqui, quero ver se não se empolga com a gravação de “2 Perdidos”,de Arnaldo Antunes e Dadi, e não sai gritando pela casa, a plenos pulmões: “Quando eu quis você, você não me quis / Quando eu fui feliz, você foi ruim / Quando foi a fim não soube se dar / Eu estava lá mas você não viu”. Esse tom permanece no samba-canção “Crime Passional”. O título já diz tudo, mas a arma aqui é um silêncio demolidor, que anuncia a tragédia: “Três tiros irromperam na noite surda / Prum corpo de calor que se estinguiu / Me deu três beijos úmidos de lágrima / Selou meus olhos como um arrepio”. A saída claro é ir para o bar afogar as mágoas e cair no samba gostoso “Roupa do Corpo”..

É impressionante como o álbum se constrói como uma grande teia em que as letras e músicas parecem dialogar entre si. O desfacelamento amoroso é completado com chave de ouro com o arrasador tango “Alcoba Azul”, de Hérnan Bravo Varela. Há aqui certa influência no modo de cantar de Zizi Possi e Ney Matogrosso. A ligação com a canção seguinte, “Saga”, ocorre principalmente em função da presença do bandoneon de Carllito Magalhanes, que é acompanhado também por Filipe Catto na percussão. A letra é a descrição de uma incrível noite de amor, dessas que são vividas poucas vezes: “E nessa saga venho com pedras e brasa / Venho sorrindo / Mas sem nunca me esquecer / Que era fácil se perder por entre sonhos / E deixar o coração / Sangrando até enlouquecer”.

Filipe Catto prova também ser capaz de adaptar as mais diferentes canções ao seu estilo bastante pessoal. Além da canção de Dadi e Arnaldo Antunes e o tango de Hérnan Bravo Varela, estão ali “Garçon”, de Reginaldo Rossi, numa interpretação para lá de cool; o bolero “Rima Rica / Frase Feita”, de Nei Lisboa, um dos mais geniais compositores gaúchos; o fox-trot “Dia Perfeito”, de Marcelo Gross; e o clássico setentista “Ave de Prata”, de Zé Ramalho. Há certo tom de mistério tanto no arranjo, quanto na interpretação. Nada mais adequado para encerrar um álbum como se fosse um belo filme, daqueles que te fazem chorar e pensar sem parar no final da sessão. “É muito mais do que antes / Mas do que vinte anos multiplicar”.

“Fôlego” chega na hora certa para provar o quanto a música brasileira é rica. Há tempos não aparecia um artista que já surge pronto. Curiosamente, isso ocorre justamente dez anos após a morte de uma das cantoras mais diversificadas que se viu por aqui, Cássia Eller.

Resta saber se a comparação entre os dois é possível de ser feita também em apresentação ao vivo, o que poderá ser avaliado por quem estiver em São Paulo na sexta-feira (16), quando Filipe Catto ocupará o palco do Auditório Ibirapuera. Confira.

Serviço
Sexta-feira, 16/12, a partir das 21h. Ingressos de R$ 10 a R$ 20.
Auditório Ibirapuera – Avenida Pedro Álvares Cabral, s/n. Portão 2. T: (11) 3629-1075