Pensão que reuniu contracultura brasileira ganha livro

Livro de Toninho Vaz, “Solar da Fossa’ é um retrato da efervescência cultural e política dos anos 1960 e 1970 (Reprodução) Quem chega ao bairro de Botafogo, na zona sul […]

Livro de Toninho Vaz, “Solar da Fossa’ é um retrato da efervescência cultural e política dos anos 1960 e 1970 (Reprodução)

Quem chega ao bairro de Botafogo, na zona sul do Rio de Janeiro, dificilmente imagina que onde hoje fica o imponente shopping Rio Sul existia uma pensão de 85 apartamentos, que serviu de moradia para os até então pouco conhecidos músicos Caetano Veloso, Pauinho da Viola, Gal Costa, Gilberto Gil, Tim Maia, Hyldon, Jards Macalé, Zé Rodrix e Guarabyra; os atores Antonio Pedro, Cláudio Marzo, Betty Faria e Darlene Glória; o diretor de teatro Aderbal Freire Filho, o poeta Paulo Leminski, o futuro político Cristovam Buarque e o futuro escritor Paulo Coelho. Esse é o tema do ótimo livro “Solar da Fossa – Um território de impertinências, ideias e ousadias”, escrito por um dos ex-moradores, Toninho Vaz.

Eficiente retrato de época, com prefácio assinado por outro morador ilustre, o jornalista Ruy Castro, “Solar da Fossa” reúne histórias divertidíssimas, relatadas com muito bom-humor e no ritmo preciso por Toninho Vaz. É impossível abandonar esse livro antes da última página e não se divertir imaginando, por exemplo, as avassaladoras noites de amor do tradicional sambista Zé Kéti. Ou então não se envolver com a história do caso de Darlene Glória com o chefão do Esquadrão da Morte, com quem teve um filho. Também é irresistível imaginar os rapazes sofrendo apaixonados pela belíssima atriz Ítala Nandi, que não dava bola para qualquer um deles.

Porém, nem tudo é tão divertido assim. Muito pelo contrário. O Brasil vivia os terríveis anos de chumbo, a truculência do regime militar e a tortura. Assim, a pensão funcionava como um dos últimos redutos de liberdade, ousadia e irreverência. Não è à toa que foram inúmeras as tentativas de acabar com aquela festa, o que acabou de fato ocorrendo e que foi retratado pelos jornais da época mais pelo folclore que envolvia o local, do que pelo valor histórico e arquitetônico do casarão, o que é muito bem questionado por Toninho Vaz.

Além das histórias e do folclore que cercou o Solar da Fossa, Toninho Vaz retrata os principais acontecimentos do período e como eles refletiam ali. Portanto, há referências desde a morte do romancista Guimarães Rosa até as polêmicas eliminatórias dos festivais da música popular brasileira. Não fica de fora o exílio político, a morte do então deputado Rubens Paiva nos porões da ditadura e a prisão dos integrantes do jornal “O Pasquim”, que era outro foco de resistência da época.

A pensão foi tão marcante que apenas Caetano Veloso a menciona no clássico “Panis et Circensis”: “Mandei plantar / Folhas de sonho no jardim do Solar / As folhas sabem procurar pelo sol / E as raízes procurar, procurar”. E compôs ali “Paisagem Útil” e “Alegria, Alegria”, que se tornou espécie de hino dos estudantes. Já Paulinho da Viola se inspirou naqueles ares para criar “Sinal Fechado”. Paulo Leminski, por sua vez, escreveu ali boa parte do romance “Catatau”, cujo nome, aliás, surgiu naqueles corredores. Hoje é um clássico indispensável da literatura brasileira. Também sofreram influência daquela efervescência sucessos como “Soy Loco Por Ti América”, de Gilberto Gil e Capinam, e “Azul da Cor do Mar”, de Tim Maia.

“Solar da Fossa”, portanto, é um documento indispensável para quem se interessa pelos bastidores da cultura brasileira, mas também para traçar um retrato de um dos períodos mais efervescentes e conturbados da história do país. Talvez justamente por isso seja tão triste ler as últimas páginas, que descrevem a invasão da polícia, e o casarão sendo abandonado e depois demolido. “Quando a demolição estava acontecendo por trás dos tapumes, a gente passava de ônibus e ficava imaginando os operários encontrando as malas enterradas com livros proibidos, verdadeiros catecismos anticapitalistas. Tudo agora sacudido por retroescavadeiras e bate-estacas. Ironia do destino”, tão bem descreveu um dos moradores, Paulo Romeu.

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