Paralisação

Na prática, uma greve geral. E de alto teor explosivo

Estagnação econômica com crise social é coisa - a História já provou - de altíssima octanagem

Marcelo Camargo/Agência Brasil

A tensão social se acumula, com as decepcionantes previsões para o futuro da economia brasileira

Vivenciamos na prática, há uma semana, os efeitos de uma greve geral em todo o país. O movimento dos caminhoneiros teve o condão de travar quase toda a atividade produtiva, ao bloquear a circulação de mercadorias, em especial ao cortar o abastecimento de combustíveis de norte a sul. É difícil localizar um setor que não tenha sido por ele afetado, seja por falta de suprimentos, seja pela dificuldade de seus trabalhadores se deslocarem.

A capilarização da greve se dá pelo papel estratégico que tem o transporte rodoviário nestas terras. Em situações anteriores, nas quais outras modalidades de deslocamentos eram centrais para a economia, as características eram semelhantes.

Bondes, trens e navios

A histórica greve de 1917, em São Paulo, só se torna geral quando, duas semanas após sua deflagração nas fábricas, os condutores de bonde cruzam os braços. Ao longo das décadas seguintes, a ferrovia e o sistema de portos se tornaram nevrálgicos em uma economia agroexportadora. Não à toa, o PCB – Partido Comunista Brasileiro – sempre teve numerosas bases nas categorias ligadas a tais setores.

Em uma economia regida pelo fordismo e por contratos de trabalho mais definidos – em especial após o advento da CLT, entre 1943 e 1964 – era muito mais simples verificar quando existia greve e quando havia locaute nas mobilizações.

A categoria dos caminhoneiros não é exatamente uma “categoria”, no sentido usual do termo. Ela é múltipla e variada em sua composição. Há autônomos (cerca de 70%), funcionários de empresas e empresários, num universo de mais de um milhão de trabalhadores mal remunerados. Pelas características de trabalho solitário com vínculos precários, não há organização sindical convergente ou definida. Há contratos intermitentes, com e sem carteira assinada, jornadas indefinidas, metas informais, riscos de toda ordem (a começar pelo de vida), submissão variada a chantagem e corrupção por parte dos serviços de segurança rodoviários, longos períodos fora do lar e forte tendência ao individualismo.

Em outras palavras, parece ser a categoria dos sonhos dos formuladores da reforma trabalhista do governo Temer. Que este contingente de homens e mulheres (minoria) consiga coordenar e deflagrar um movimento como este, é um tento admirável.

O delírio da “greve pura”

Nessas condições, é puro delírio alguém imaginar ser possível a realização de uma greve “pura”, apenas de trabalhadores, com pautas muito definidas e articuladas. É justamente aqui que as características de greve e locaute se superpõem num mesmo movimento e se estabelece – através de inúmeros dirigentes – uma disputa encarniçada pela direção das reivindicações.

Esse enfrentamento interno ficou claro na quinta-feira, quando representantes do governo federal se reuniram com delegações dos caminhoneiros. Oito entidades levaram a Brasília suas pautas. Eram elas:

1. Redução a zero da Cide e do PIS/Cofins sobre o óleo diesel

2. Extinção da política de reajuste diário dos preços do combustível

3. Suspensão da cobrança de pedágio sobre o eixo suspenso de caminhões vazios

4. Criação de um piso mínimo para o frete.

É curioso que não haja nenhuma demanda trabalhista entre esses pontos e outros fechados com os golpistas de Brasília. Nada de salário, condições de jornada etc. Como era de se esperar, algo deu errado. O portal da Globo informou o seguinte, naquela tarde:

“O presidente da Associação Brasileira dos Caminhoneiros (Abcam), José da Fonseca Lopes, deixou a reunião no Planalto por volta das 15h30. Na saída, ele afirmou que a entidade não aceitava a proposta do governo. A Abcam diz representar 650 mil caminhoneiros”.

O movimento continuou firme.

Empresários e trabalhadores

Ao que parece, o setor patronal – com sua pauta liberal de isenção tributária – se acertou com o Planalto, deixando os trabalhadores de fora. É possível que isso explique – é apenas uma especulação – o fato de a mídia e a administração federal não terem, nos dois primeiros dias, investido contra os paredistas. Imaginavam se acertar com os patrões e ponto final. Havia um fator adicional para isso: a demanda pela redução dos preços dos combustíveis tornou o movimento simpático à maioria da população. Não é pouca coisa.

Firmado o acordo com a turma do locaute – que nada garante, além de uma trégua de trinta dias, suficiente para desmobilizar as ações nas estradas -, os meios de comunicação e o governo mostraram suas garras. Teve início a demonização dos caminhoneiros pelo Jornal Nacional e pelos programas policialescos e noticiosos (não há fronteira nítida entre eles) de outras emissoras.

Do lado oficial, as feras foram soltas na tarde de sexta. Primeiro, o governo valeu-se de seu contínuo no STF, o prestativo Alexandre de Moraes, para decretar a ilegalidade do movimento, com a adoção de multas pesadíssimas de R$ 100 mil por hora, caso as estradas não fossem imediatamente desobstruídas. Em segundo, veio o espetáculo: Garantia de Lei e da Ordem (GLO), em todo o Brasil. Em português claro, uma virtual intervenção militar com poder de polícia para retirar os caminhões do meio das pistas.

Há lado nessa história

Apesar do caráter confuso das manifestações caminhoneiras, não pode haver a menor dúvida por parte da esquerda sobre o lado a se perfilar. É possível que, dado o grau de repressão e do bombardeio midiático, haja descontentamento popular com a falta de produtos e serviços e o movimento reflua.

Mas o desgaste governamental pela manutenção da política de preços da Petrobrás – que vincula valores internos à variação cambial – começa a ficar escancarado. Ou seja, para contentar algumas centenas de acionistas, o governo golpista – encabeçado pela figura luminar de Pedro Parente – não titubeia em submeter a maioria da população brasileira a grossa chantagem.

A tensão social se acumula, sem muita chance de se reduzir, dada as decepcionantes previsões para o futuro da economia brasileira. Professores do ensino privado entram em greve em São Paulo e Minas, petroleiros ameaçam parar e outras categorias se articulam.

Estagnação econômica com crise social é coisa – a História já provou – de altíssima octanagem.