velhos costumes

O ovo de serpente da intervenção no Rio

As milícias – compostas majoritariamente por ex-policiais (muitos expulsos das corporações) – se tornaram o grande negócio paralelo descoberto por setores das 'forças de ordem' do Rio

Fernando Frazão / ABr

Ao tirar proveito da situação de falência do Rio e inventar uma intervenção na segurança pública fluminense, Temer dá uma perigosa carta branca a setores das ‘forças de ordem’

Além do indefectível efeito anestésico que aos poucos vai dominando corações e mentes de boa parte dos “indignados”, os dezessete dias decorridos desde o atentado que matou a vereadora carioca Marielle Franco e o motorista Anderson Gomes nos trouxeram a certeza de que um ameaçador ovo de serpente está sendo chocado no Rio de Janeiro, com a anuência – para não dizer incentivo – do governo federal. Ao tirar proveito da situação de falência financeira, administrativa e política do Rio provocada pela gestão desastrosa de seu próprio partido, o MDB, e inventar uma intervenção na segurança pública fluminense que parece ter o principal objetivo de trazer dividendos ao seu próprio governo, o presidente Michel Temer assume o risco de entregar uma perigosa carta branca a setores das “forças de ordem” que têm as mãos manchadas pelo sangue de suas – muitas vezes inocentes – vítimas.

Enxerguemos além das pomposas cerimônias oficiais que recentemente reuniram ministros, secretários de segurança, deputados, delegados, generais do Exército e coronéis da Polícia Militar. Estes momentos são sempre repletos de anúncios de boas intenções, promessas vagas e citações a planos de ação concreta que “ainda estão sendo elaborados”. Bom, pelo menos daqui pra frente o cafezinho servido a autoridades e jornalistas durante as entrevistas coletivas talvez melhore de qualidade, já que o setor de segurança pública do Rio acaba de receber a ajuda extraordinária de R$ 1,2 bilhão do governo federal, por intermédio do recém-criado Ministério da Segurança Pública. Mas, enxerguemos além…

Provavelmente, só mesmo o simpático Eremildo, o idiota (personagem de mestre Elio Gaspari) deve estar acreditando que esta verba vinda de Brasília será efetivamente aplicada onde deveria, ou seja, em “melhora da infraestrutura, compra de veículos e equipamentos, blá-blá-blá”, como dizem as autoridades para um cada vez mais incrédulo povo fluminense. Parte da verba será necessariamente usada para isso, é claro, mas quem inspecionará se está sendo feita com correção a total aplicação desses recursos? O perigo, o grande perigo, e até as pedras das calçadas do Rio sabem disso, é essa verba se transformar em moeda de troca – literal e política – para grupos que hoje têm grande influência nas polícias fluminenses.

Sim, estou falando das milícias, o grande negócio paralelo descoberto por setores das “forças de ordem” do Rio desde o fechamento dos bingos e hoje o principal tumor a corroer a paz e a segurança no estado. Compostas majoritariamente por ex-policiais (muitos expulsos das corporações) – ou quase sempre por eles comandadas – estas milícias hoje controlam boa parte da capital e já atuam em diversas cidades do interior, chegando em algumas comunidades a exercer, como amplamente sabido, monopólio no transporte coletivo, na assinatura de tevê a cabo e na venda de botijões de gás. Lembra aquela história de que “viemos para acabar com o tráfico” que embalava a propaganda dos milicianos há alguns anos? Esqueça! Agora tem milícia no Rio que até vende maconha e cocaína…

Mas, velhos costumes não são esquecidos facilmente. Na semana passada, cinco jovens (dois deles menores de dezoito anos) que estavam reunidos em uma praça na cidade de Maricá no fim da madrugada após voltar de uma festa foram rendidos, deitados no chão e executados com tiros na cabeça. Nenhum deles tinha antecedentes criminais e, segundo vizinhos e parentes, tampouco envolvimento com o tráfico. É possível que estivessem usando drogas. Aos moradores que saíram às janelas assustados com os tiros, os matadores disseram, “entra, que isso é assunto da milícia”. Esses testemunhos não provam nada, é verdade. A investigação está a cargo da polícia, que também investiga a linha de “guerra pelo controle de pontos de venda de drogas”, embora ali não houvesse nenhum.

Também cabe à própria polícia a investigação sobre as mortes de Marielle e Anderson. Até o momento em que traço estas linhas, nada foi descoberto ou anunciado, embora a comoção internacional causada pelo episódio force às autoridades a apresentar algum resultado. Apesar de os assassinos terem se utilizado do modus operandi comum aos esquadrões da morte, a polícia – por dever de ofício, necessário a qualquer investigação – trabalha também com a hipótese de que traficantes da Maré (comunidade da vereadora assassinada) ou seus rivais tenham cometido o atentado.

Tudo bem, tudo deve ser investigado, mas quem conhece o Rio sabe que é muito improvável que o planejamento e a execução do crime tenham sido obra de traficantes. Embora não tivesse nenhum envolvimento com o tráfico, Marielle era respeitada na comunidade, era um símbolo positivo para a juventude da Maré e não representava ameaça a ninguém, a não ser aos incomodados com os desmandos policiais que denunciava. A Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Rio (Alerj), onde Marielle despontou para a atuação política, recebe dezenas de denúncias de abusos policiais a cada mês. Os crimes incluem agressões e assassinatos, e cada vez mais envolvem a ação de milicianos.

Vidas que seguem, investigações que prosseguem, mas a sinalização para os “justiceiros” no Rio parece ser a de que “liberou geral” e (será paranoia minha?) os acontecimentos têm se acelerado após a morte de Marielle. Desde então, reapareceram de forma preocupante cenas que lembraram os piores momentos do estado, como, por exemplo, o confronto em via pública no Complexo do Alemão que resultou na morte de três pessoas que voltavam do trabalho.

Ou como as “incursões” na Rocinha que já deixaram um rastro de doze mortos, todos após confronto, segundo os policiais envolvidos, embora as negativas de familiares de algumas vítimas sobre o envolvimento destas com o tráfico estejam também aqui presentes. Independentemente se os mortos eram ou não traficantes, a ação na favela da zona sul carioca foi uma clara retaliação ao assassinato, ocorrido anteriormente, de um policial militar, tragédia exibida na tevê, e foi realizada com a intenção prévia de matar. O corporativismo fala mais alto, e a PM carioca mais uma vez foi fiel ao pior perfil de si mesmo. Se tivesse essa “eficiência” para proteger a população…

Posto isso, é evidente que precisamos também gritar e denunciar que, mais do que nunca, policiais estão sendo mortos aos montes no Rio de Janeiro. Esse hábito macabro que faz os bandidos assassinarem policiais surpreendidos em situação de vulnerabilidade – seja em ações da polícia ou, mais comumente, em roubos e assaltos – é o pus mais pestilento da ferida social carioca. Retrato de uma engrenagem onde bandidos e policiais se matam sempre que podem, e ambos volta e meia matam inocentes.

Traficantes e bandidos em geral são o que de pior pode ser produzido pela sociedade e devem ser punidos no rigor da lei. Os policiais e seus familiares são talvez as vítimas mais pungentes dessa tragédia, colocados na ponta de lança de um enfrentamento desigual e diuturnamente alimentado por um sistema cruel. Em sua imensa maioria, são policiais oriundos de famílias pobres, são filhos de trabalhadores que têm sua função e suas vidas menosprezadas. Assim como os jovens, em sua maioria negros e em situação de miséria, que se deixam seduzir pelo tráfico, esses policiais são peças descartáveis e estão neste jogo para morrer.

Enquanto isso, na corte, Temer viaja na suposta onda de popularidade que a intervenção na segurança pública do Rio teria lhe concedido (talvez na Vila Kennedy, comunidade carioca vizinha à Vila Militar onde o Exército empacou durante um mês e só saiu há alguns dias). Docemente constrangido com o “sucesso” da empreitada, nosso presidente admite até se candidatar à reeleição. Seria cômico, mas o problema é que a realidade de grande parte da população do Rio é trágica.

Não esqueçamos que Temer é protagonista de um processo de golpe e retrocesso político que não terminou com o afastamento de Dilma Rousseff. Muito pelo contrário, ele ainda segue seu curso. A efetivação do golpe envolveu e teve apoio de muitos setores, e Temer particularmente sempre buscou retribuir a simpatia dos chamados “setores policiais”. Essa busca foi explicitada com a injustificável criação do Ministério da Segurança Pública e agora corre o risco de virar uma festa macabra após a vultosa ajuda financeira dada pelo governo federal a uma ideia política reacionária e que utiliza o Rio e seu povo como cobaias e laboratório.

Que todos fiquemos atentos! E o alerta vale também para aqueles setores saudosistas de certas “páginas infelizes de nossa história”, quando policiais e bandidos mataram sem culpa, e que afetam e distorcem até hoje os conceitos de segurança pública de parte da sociedade brasileira. Quando o ovo eclodir, a serpente pode envenenar todo o Brasil.

Maurício Thuswohl é jornalista

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