pós-tempestade

No rastro do ódio semeado, surge uma trilha rumo a um Brasil na contramão da felicidade

Quem já viveu um Brasil de perseguições, denúncias, delações e caça às bruxas não deseja ver a tragédia se repetir

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Dono da Última Hora, Samuel Wainer sofreu um dos raros os casos de trairagem no meio jornalístico

Hildegard Angel – As pessoas se assustam com a crescente onda de obscurantismo no Brasil. A truculência que arrebata nosso cotidiano, em todos os campos de relações, nos estádios de futebol, discussões de trânsito, desavenças de vizinhos, pequenas discórdias do cotidiano, que antes seriam resolvidas com um aperto de mão ou um desaforado palavrão, daqueles ‘caseiros’, hoje resultam em violentas agressões morais e físicas, até em morte.

Esquadrões de trogloditas musculosos, cheios de endorfina para brigar (e não para amar), são arregimentados, bastando uma compartilhada de Facebook, e vão às dezenas, centenas, aos milhares, barbarizar nas finais de campeonato, em manifestações políticas, discotecas ou bares da madrugada. São hordas e hordas de acéfalos tatuados, deformados pelos anabolizantes proibidos, tanta musculatura que são obrigados a andar meio curvos, fazendo lembrar os antepassados pré-históricos, pré-Civilização, da Idade da Pedra.

Some-se a isso o fenômeno de uma religiosidade exacerbada, que se expande por todo o nosso território, se sobrepondo a qualquer razoabilidade, como se retornássemos aos tempos dos catequistas de índios e negros, inquisidores e reformistas, tentando impor como única a sua fé, nesta Nação historicamente diversa de credos e, por esse motivo – explicavam no passado os antropólogos – amena e cordial.

Imposição também de um jornalismo político corporativo, que serve não à verdade, à notícia e ao público, mas aos interesses do mercado financeiro, às empresas transnacionais, aos seus próprios investimentos e ambições.

Jornalismo pautado pela ausência de controvérsias, gerando um Brasil de animosidades, avesso às diferenças, preconceituoso, elitista. Trilhamos um perigoso caminho rumo ao pior radicalismo de direita, à face do atraso, na contramão de todas as conquistas e possibilidades de progresso, harmonia, felicidade e futuro.

Tal jornalismo não há de querer assumir a autoria do estrago, que com inconsequente competência urde agora. Porém, a onda bolsonarista cresce com perigosa intensidade, e ela não é filha apenas da irresponsabilidade dos tucanos, também tem mãe bem conhecida…

O poder da grande mídia é muito grande, se comparado ao dos Sem Mídia ‘fracos e oprimidos’. O poderoso não admite comentário nem contestação. E o que temos visto hoje, nesses tempos de vacas magras nas comunicações, em que o mercado de emprego é reduzidíssimo? Jornalistas da grande imprensa processando companheiros da pequena imprensa e da mídia virtual e, por força de suas possibilidades bem superiores, invariavelmente vencendo as causas, levando seus colegas a venderem os poucos bens e a promoverem crowfundings nas redes sociais para arcar com as altas somas das sentenças proferidas pelo Judiciário.

Na época opressiva da ditadura isso seria inimaginável. Havia tal senso de classe, fervor corporativo de tal forma solidário, que seria impensável abandonar um companheiro em posição desfavorável. Que dirá pensar em processá-lo. Eram raros os casos de trairagem no meio jornalístico. Um deles foi-me relatado por Samuel Wainer.

Protagonista dos fatos dos anos 60, dono da Última Hora, que apoiava o governo Jango, Samuel era acusado pela concorrência de ir contra a lei, pois estrangeiro não podia ter jornal.  Com o golpe, para não ser preso Samuel refugiou-se na embaixada do Chile, no Rio de Janeiro. O que foi divulgado por Ibrahim Sued em sua coluna social, denunciando a ilegalidade de Samuel, “um judeu da Bessarábia”, e que por isso deveria “ir para o paredón” – alusão irônica ao comunismo de Fidel Castro – transmito conforme ouvi de Samuel.

Passada aquela tempestade de 64, finda a ditadura, Sued e Samuel se reencontraram e este – já envelhecido e sem poder – perguntou a Ibrahim, ainda no auge de sua glória: “Por que você fez isso comigo? Você se dizia meu amigo, frequentava a minha casa…”. E ouviu: “Samuel, fui menino de Nova Iguaçu, e aprendi que balão, quando está caindo, a gente tasca”. Fiquei chocada.

Poucos anos depois, com a morte de Samuel, a família publicou sua biografia. Corri para ler as referências a Ibrahim. Só elogios. Samuel, que deixou filhos e netos, conhecia bem a ira rancorosa dos poderosos da mídia…

Moral dessa postagem: quem já viveu um Brasil de perseguições, denúncias, delações e caça às bruxas não deseja ver a tragédia se repetir.