crise mundial

O aperitivo e tira-gosto da Terceira Guerra

Apesar de os mísseis lançados contra a Síria guardarem distância de bases onde há russos e iranianos, Rússia e Irã afirmaram que haverá “consequências”

Hoàng Ngô/FLICKR

Na sexta-feira, Estados Unidos, Reino Unido e França realizaram um ataque à Síria. Rússia fala em ‘consequências’

Na manhã de sábado passado, a pergunta que não queria calar e que todo mundo tinha medo de responder era a de se começara a Terceira Guerra Mundial. Havia suspeitas de que sim, havia indícios de que não. De momento, estes predominaram sobre aquelas.

Na noite e madrugada de sexta-feira, os Estados Unidos, o Reino Unido e a França realizaram um ataque, que diziam e dizem ter sido limitado e pontual, a posições sírias que abrigariam ou serviam de instalações para testes com armas químicas, como o gás sarin e talvez outras.

Segundo estas fontes, os ataques se concentraram em bases em Damasco, Homs e Barzeh, além de algumas outras.

As suspeitas sobre a possibilidade da eclosão da 3ª Guerra eram as mais fortes e graves desde a crise dos mísseis em Cuba, em 1962, e o risco de confronto entre os blindados da União Soviética e dos Estados Unidos diante da passagem de Checkpoint Charlie no Muro de Berlim, em 1961. Até o final do século 20 houve pelo menos três casos de falsos alarmes que elevaram a temperatura da Guerra Fria então vigente. Mas nada que se compare com o que aconteceu neste fim de semana: um ataque real a um território ocupado por forças russas, entre outras.

A Rússia e o Irã afirmaram que haverá “consequências”, embora não tenham especificado quais seriam.

Ao mesmo tempo, os indícios de que ela não começou, ou melhor, ainda não começou eram também pertinentes, segundo várias análises na mídia internacional.

Os mísseis lançados contra as posições sírias evitaram as proximidades de bases onde há a presença de forças russas e iranianas.

Os Estados Unidos avisaram a Rússia sobre a trajetória dos mísseis, embora não sobre quais alvos seriam atingidos. Eles, mais o Reino Unido e a França, declararam que o ataque visava apenas pressionar ou impedir que Bashar al Assad continuasse a usar armas químicas na guerra. Defenderam a oportunidade e a legalidade da medida, ainda que não tenham consultado o Conselho de Segurança da ONU e nem seus respectivos parlamentos. Quem se dirigiu agora ao Conselho de Segurança foi a Rússia. Para variar, nada se concluiu.

A partir daí, as informações sobre o ataque, como costuma acontecer nestas ocasiões, foram muito contraditórias. O governo sírio anunciou haver três feridos. Outras fontes falaram em seis. Não há ainda (domingo) informações sobre mortos. O Pentágono afirma ter provas de que houve o uso de gás na cidade de Douma, perto de Damasco, mas que estas provas são confidenciais. O presidente francês também afirmou ter provas, mas também não as mostrou. Uma equipe da Organização Mundial de Saúde, sob a bandeira da ONU, espera poder fazer investigações em Damasco. Rússia e Damasco negam a existência do ataque.

Trump comemora a “vitória”. Dizem fontes militares norte-americanas que o “coração” do programa de armas químicas da Síria foi praticamente destruído. A embaixadora dos Estados Unidos na ONU, a belicosa Nikki Haley, afirmou que seu país tem as armas “carregadas e engatilhadas”, no melhor estilo John Wayne, para usar, caso Bashar Al Assad use de novo armas químicas.

Os Estados Unidos disseram que não registraram perdas, nem humanas, nem materiais. O governo sírio disse que de 100 a 110 mísseis foram lançados sobre suas posições, e que 20 deles foram abatidos por suas defesas anti-aéreas. O governo russo foi mais longe: fixou o número de mísseis lançados em 103, e o de abatidos em 71.

Algumas hipóteses e conclusões possíveis, a partir de diferentes comentários na mídia:

Trump precisa da agressividade contra Putin para se livrar, na frente política interna, da acusação de ser manipulado por este ou de ter sido favorecido pelos russos na sua eleição. Além disto, os Estados Unidos precisam de um inimigo externo forte para continuar sua corrida armamentista em nome de sua soberania mundial. Neste jogo de torres e cavalos imperiais, Bashar al Assad não passa de um peão, embora incômodo, pois, ao contrário de Saddam Hussein e Muhammad Ghadaffi, não foi derrubado e tem uma posição de momento consolidada, ainda que seu país esteja em frangalhos.

Os Estados Unidos não têm interesse, de momento, num confronto direto com a Rússia. E Esta também não tem interesse nele, porque, embora poderosa, sua força militar não se compara a dos norte-americanos. Além disto, a Rússia vem ganhando posições no confronto diplomático com os Estados Unidos.

O atual movimento consolidou, aparentemente, a existência de um eixo, por mais paradoxal que pareça, entre Estados Unidos, Reino Unido, França, Israel e Arábia Saudita, com mais alguns apoios, como o dos Emirados Árabes Unidos. Do outro lado estão Bashar al Assad, a Rússia, o Irã e o Hezbollah. A Turquia dança entre um lado e outro: saudou o ataque, mas toma parte no esforço diplomático da Rússia e do Irã. Outros aliados do bloco Ocidental apoiaram a ideia do ataque, mas com reações mornas e algo distantes, como no caso da Espanha, do Canadá, da Holanda. A Alemanha apoiou, mas se manteve num distanciamento obsequioso. A China, embora apoie Moscou no Conselho de Segurança, mantém seu ar de esfinge em tudo isto. Da parte dos aliados mais tradicionais dos Estados Unidos, há um temor de várias dimensões, sobretudo na Europa, de que a belicosidade de Trump, se não levar a uma guerra de dimensões catastróficas, poderá criar situações terríveis para a economia do continente. E há também o temor de que, se Putin reagir à altura dos desafios de Trump, a União Europeia será a primeira a sofrer as consequências, do ponto de vista militar, político e econômico.

Embora o secretário-geral da ONU tenha pedido calma para todo mundo, não há qualquer esperança de pacificação na Síria, diante da guerra cujo saldo é de mais de 350 mil mortos, 106 mil deles civis, 150 mil desaparecidos, e mais de 13 milhões de refugiados, sendo quase 6 milhões no exterior.

Mas, afinal, houve ou não houve o uso de armas químicas? Tudo indica que sim, e várias vezes. Segundo relatórios da ONU, as maiores suspeitas caem de fato sobre as forças de Bashar al Assad. Este nega peremptoriamente a acusação. Mas há também acusações e suspeitas sobre ataques semelhantes praticados por grupos rebeldes apoiados pelo Ocidente. Uma pergunta se impõe: qual é a “vantagem” dos ataques com gás? (Podem haver outras formas de ataque, como o envenenamento de fontes de abastecimento de água, ou o uso de herbicida, como os Estados Unidos fizeram no Vietnã). Em geral, o gás é usado como uma arma de efeito físico e psicológico por forças de ocupação que avançam sobre posições inimigas. Dependendo da dose e do gás o ataque provoca mortes e também pode deixar sequelas permanentes nas vítimas. Psicologicamente, o ataque provoca pânico, fazendo com que civis e até mesmo militares nas áreas-alvo debandem ou recuem, facilitando o avanço dos atacantes e diminuindo-lhes as perdas. Como tudo na guerra, há uma lógica terrível por trás, mas há uma lógica.

A outra questão que se levanta é a da “política de biruta” de Trump e seus efeitos. Não faz muito Trump anunciara a disposição de retirar as forças norte-americanas da Síria. Agora deu uma pirueta e partiu para o ataque frontal. Aquele anúncio de retirada foi lido predominantemente como o reconhecimento da derrota militar e do fracasso da política norte-americana na região. Acontece que para o establishment econômico-militar hegemônico nos Estados Unidos isto seria intolerável. Este establishment ainda não se recuperou da necessidade de reconhecer a derrota no Vietnã, praticamente a única que tiveram de amargar desde a guerra contra a Espanha por causa de Cuba em 1898, que projetou os EUA como uma potência de vocação hegemônica no mundo, lembrando que a Guerra da Coreia, nos anos 50, desembocou num empate técnico. Para este establishment é vital manter o perfil de potência máxima no plano militar, econômico, energético (talvez daí as implicações para o pré-sal brasileiro e mais adiante para o Aquífero Guarani) e cultural.

Para finalizar: embora a mídia mainstream do Ocidente não perca a oportunidade de criticar Putin, muitas vozes dentro dela estão reconhecendo que, paradoxalmente, diante da belicosidade de Trump, a esperança de que alguma forma de bom senso prevaleça e a situação não descambe para uma guerra generalizada repousa nas mãos deste novo czar do século 21, em Moscou.

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