Lembrança

Das peladas à busca do Brasil soberano, o destemido Marco Aurélio Garcia

Como ponta-esquerda atrevido, ante os zagueiros e os infartos, Garcia estressou e encantou os amigos. Como intelectual e socialista, construiu o ideal de um Brasil justo consigo mesmo e com seus vizinhos

RBA

Marco Aurélio Garcia morreu nesta quinta-feira (20), aos 76 anos, vítima de um infarto

O ponta deu uma arrancada veloz em direção à linha de fundo. Conseguiu alcançar a pelota que lhe fora lançada desde a sua intermediária. Dominou-a com maestria e centrou para a área adversária, onde o centro-avante não teve dificuldades para marcar o gol, levando a torcida ao delírio.

Não, você não está diante de uma cena da Copa do Mundo de 1958. Primeiro, porque o referido ponta não se chamava Garrincha, nem avançava pela direita, mas pela esquerda (claro!). O centro-avante não lembro quem era, mas não se chamava Vavá.

Não estávamos em Gotemburgo nem Estocolmo, mas num campinho do sítio onde eu morava, em Itapecerica da Serra (SP). Nem mesmo a pelota fora adiantada num lançamento clássico, mas num chutão pra frente que eu dei de qualquer jeito. E o ponta-esquerda em questão, que deu o pique veloz, chamava-se Marco Aurélio Garcia.

É verdade que seu trabalho foi facilitado porque quando ele arrancou a toda velocidade os dois times – o nosso e o adversário – congelaram em campo, e a pequena torcida de amigas e amigos também: poucas semanas antes Marco Aurélio sobrevivera a um infarto. Quando nada mais aconteceu, a não ser o gol, o grito da torcida não foi propriamente de delírio, mas de alívio. Mas depois desse suspense todo, Marco Aurélio partiu para o mais que merecido abraço, sorridente e feliz.

Essa é a lembrança mais constante que tenho dele: sorridente e feliz, engraçado e irônico, profundo e grave nos momentos necessários, mas sempre pronto para um pique veloz na direção da alegria e do bom humor.

Marco Aurélio foi dos militantes e intelectuais de maior brilho da geração porto-alegrense que cresceu dentro da universidade, da resistência ao regime de 64 dentro e além do movimento estudantil. Enumerar os destaques dessa geração seria longo demais. Por isso, me restrinjo a evocar um certo grupo deles, associados, naquela época, à chamada “Dissidência” do Partidão, que, depois, em conjunto com a Organização Revolucionária Marxista Política Operária (Polope outros grupos deu origem ao Partido Operário Comunista, o POC.

Tratava-se, além de Marco Aurélio, para lembrar esse grupo mais restrito a que me refiro, e algumas e alguns simpatizantes, de Flávio Koutzii, Elizabeth Souza Lobo, Marcos Faerman (o Marcão), Luiz Paulo Pilla Vares, Sônia Pilla, Raul Pont. Havia outras e outros, mais jovens, como Maria Regina Pilla, Jorge Matoso, Elizabeth Vargas, José Kenijer, além dos e das que não cito porque faz tempo que não os ou as vejo, e não sei se gostariam de ser citados.

Eram vagamente e de modo um tanto inapropriado citados como trotskista. Circulavam e eram associados a um triângulo formado pelo Centro Acadêmico André da Rocha, no porão da Faculdade de Direito, o Centro Acadêmico Franklin Delano Roosevelt, da Faculdade de Filosofia, nas lindes do Parque Farroupilha, e a Livraria Universitária, do Flávio Koutizii, na Avenida João Pessoa. Todos os três marcos ficavam a uma distância uns dos outros que podia ser percorrida a pé. Havia outros pontos de referência, mas aqueles eram os mais notórios.

Depois vieram os tempos duros das ações clandestinas, das perseguições, das fugas, das prisões, dos exílios. No começo dos anos 1970 Marco Aurélio, assim como outros militantes, foi primeiro para São Paulo (era impossível para figuras muito conhecidas permanecer clandestinas num burgo ainda relativamente pequeno como a Porto Alegre de então).

Dali seguiu para o Uruguai, de onde atingiu o Chile, militando no MIR (Movimiento de Izquierda Revolucionária). Depois do golpe de 11 de setembro de 1973 seguiu para a França, onde ficou até 1979. Ainda no Chile, ele e sua companheira Elizabeth Souza Lobo tiveram um filho, a quem deram o nome de Leon – o que aumentou sua fama de trotskista e, por tabela, a dos demais membros daquele grupo. Hoje Leon de Souza Lobo Garcia é médico psiquiatra de renome em São Paulo e no Brasil, professor universitário com especialidade em políticas de saúde pública, saúde mental e de drogas.

Voltando ao Brasil, Marco Aurélio, foi um dos fundadores do PT e tornou-se professor de História na Unicamp. Especializou-se em Relações Internacionais, além de desempenhar outras funções, como, a de coordenar campanhas presidenciais de Lula e de Dilma. Outras companheiras e companheiros poderão avaliar melhor do que eu a importância de sua atuação partidária e extraordinário intelectual de esquerda.

Limito-me aqui a lembrar sua atuação decisiva, ao lado de outros companheiros de governo, naquilo que hoje se pode chamar de “a recente época de ouro da diplomacia e da política externa do Brasil”, hoje reduzida a frangalhos pelo arrendamento do Itamaraty ao PSDB e à visão anacrônica, retardatária, paroquial, provinciana e obtusa, herdeira da Guerra Fria e da subserviência aos interesses norte-americanos.

Marco Aurélio foi fundamental para alargar nossos horizontes em direção à África, às relações Sul-Sul de um modo geral, à América Latina, à liderança dos países emergentes, ao grupo dos Brics, entre outros feitos, sem desprezar nem abalar relações com outros parceiros, como EUA, União Europeia, Japão etc.

Essa contribuição será imorredoura, por mais que os atuais governantes e interventores no Itamaraty queiram torcer-lhe o pescoço.

Marco Aurélio era um cozinheiro excelente. Devo a ele o conhecimento de uma de minhas receitas favoritas: salada de rúcula (outros verdes também são possíveis) com manga e frango grelhado e desfiado, regada a azeite de oliva e Balsâmico de Módena.

Chegamos a militar juntos no jornal Em Tempo, fundado por parte dos egressos do grande racha do jornal Movimento em 1977. Depois seguimos nos vendo com constância espaçada, mas regular. A última vez em que o vi ao vivo e a cores, e conversei com ele, foi quando da vinda de Lula e Dilma a Hamburgo, ainda quando esta era candidata a candidata à presidência.

Todas aquelas e aqueles porto-alegrenses que eu nomeei acima, e outras e outras, fomos criados no ambiente daqueles “roaring sixties”, em que líamos misturadamente Marx, Engels, Trotsky, Deutscher, Marcuse, Freud, Benjamin, Adorno, Debray, tudo batido no liquidificador daqueles anos vertiginosos e dramáticos, em que as ações militantes se misturavam aos bailes no salão da Reitoria da Universidade Federal, os ensaios de cozinha sofisticada com as madrugadas comendo cachorro quente na banca do Passaporte para o Inferno, na Avenida Osvaldo Aranha, e com noitadas no Bar do Fedor, na mesma avenida, que não fechava nunca, porque não tinha portas. Debatíamos acaloradamente a adesão ou não à luta armada.

Agora, nesta segunda leva de infarto, Marco Aurélio caiu na luta, empunhando bravamente as suas armas: aquelas da inteligência e dos afetos de seu coração, sempre aberto às causas de nosso povo, e uma adesão ardente à conjugação de uma visão internacionalista e plural das esquerdas com o ideal de um Brasil soberano, nada agressivo, e mais justo consigo mesmo e seus vizinhos.