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Ecléa Bosi, a lavradora da memória

Professora Emérita do Instituto de Psicologia da USP foi a idealizadora do programa Universidade Aberta à Terceira Idade

Francisco Emolo/Jornal da USP

Éclea Bosi notabilizou-se pelo combate aos preconceitos, na Universidade de São Paulo e fora dela

Ela gostava de plantar árvores que dessem frutos. E assim como plantava árvores, ela plantava livros. E seus livros e seu plantio de ideias deram frutos.

Estendendo a metáfora, em apenas uma de suas atividades Ecléa Bosi colheu 100 mil frutos: foi o número de idosos atendidos em 23 anos de ação do programa “Universidade Aberta à Terceira Idade”, que ela plantou na USP e dirigiu até o final de 2016.

O programa se destina a acolher pessoas de 60 anos ou mais, que não prestaram vestibular, nos diferentes cursos de graduação da USP. Atualmente ele atende 9 mil pessoas. E tem uma característica que foi inovadora em relação a programas do mesmo tipo de outras universidades espalhadas pelo mundo. As idosas e os idosos (a recomendação de que elas e eles sejam assim definidos a partir dos 60 anos vem da ONU e da Unesco) são acolhidas e acolhidos nos cursos correntes oferecidos aos jovens, o que potencia o mútuo reconhecimento social por todas as partes.

Isto é algo importantíssimo. Vou relatar uma experiência pessoal para esclarecer este ponto. Berlim é uma cidade reconhecida por suas notáveis iniciativas civilizatórias, em termos de atendimento social, cultural, econômico às populações das mais diferentes origens e vivências.

Pois bem, nesta cidade notável em todos os aspectos, é muito difícil ver-se no metrô ou num ônibus um jovem levantar-se e oferecer o lugar a uma pessoa idosa, mesmo naqueles assentos a ela reservados, ou a pessoas de necessidade especiais, mulheres grávidas ou com bebês de colo.

Assisti a cena pungente de uma pessoa idosa dirigir-se a uma jovem no ônibus pedindo que ela lhe cedesse o assento reservado para necessitados, e esta, a jovem, recusar o pedido, alegando que ela tinha pago a passagem como todo mundo e podia, portanto, sentar-se onde bem entendesse.

Assisti outra cena dolorosa, ao ver que um jovem só cedeu o assento ao idoso no metrô quando o fiscal presente lhe ordenou que assim o fizesse. Há exceções, como em tudo e em toda parte, mas em geral, quando se vê um jovem cedendo o assento a uma pessoa idosa no transporte público, trata-se de um estrangeiro.

Qual o motivo para esta indiferença? Uma das explicações dadas por especialistas da área diz que ela se deve ao fato de que na estrutura familiar esgarçada comum na Alemanha, os jovens deixam seus lares de origem muito cedo e convivem pouco com pessoas idosas, desconhecendo, portanto, em larga escala, suas necessidades e fragilidades.

Além de ajudar a abrir a universidade para os idosos – desde antes da proclamação do Estatuto do Idoso – Ecléa semeou seus livros que tiveram por epicentro o tema da memória. Memória e sociedade – Lembranças de velhos, publicado pela primeira vez em 1979 a partir de sua tese de livre-docência, tornou-se um clássico seminal reeditado várias vezes. O mesmo ocorreu com outros livros, como Cultura de massa e cultura popular – Leituras de operárias. Ou O tempo vivo da memória – Ensaios de psicologia social.

Ecléa Bosi notabilizou-se pelo combate aos preconceitos, na universidade e fora dela, preconceitos de todos os tipos e alcances, mas sobretudo aqueles dirigidos contra a pobreza, as pessoas de baixa renda, os idosos e a mulher. E com isto tornou-se uma incansável batalhadora contra todas as formas de esquecimento.

Ecléa foi ainda tradutora de primeira linha, ajudando a dar a conhecer para o nosso público da língua portuguesa/Brasil obras de Leopardi, Ungaretti, Garcia Lorca, Rosalía de Castro.

Por estas razões, e pelo seu estilo a um tempo delicado e firme de falar, agir e ser, quem a conheceu de perto vê sua bela figura espelhada nestas frases escritas pela também professora Betty Mindlin, em 2007:

“Ninguém passa incólume pelo caminho de Ecléa, guerreira e escritora de voz doce e fala poderosa. Ela vai desencadeando e puxando uma procissão uma esteira ou procissão de peregrinos iluminados, carregando bandeiras de justiça e poesia. Aqui, ela empunha livros como substância, como o pão nosso de cada dia”.

E foi assim que, neste país e neste universo das desigualdades sempre acalantadas pela escória dos que detestam seu povo e seus humildes, Ecléa tornou-se ela mesma uma poderosa árvore de belos frutos.