A Justiça e a Polícia italianas na berlinda

Em busca de detalhes sensacionais, alguns repórteres induziram – isso ficou evidente – “testemunhas” a afirmações duvidosas sobre terem visto os dois namorados tomando diferentes atitudes antes, durante e depois […]

Em busca de detalhes sensacionais, alguns repórteres induziram – isso ficou evidente – “testemunhas” a afirmações duvidosas sobre terem visto os dois namorados tomando diferentes atitudes antes, durante e depois do crime (Foto: Ansa/Reuters)

O “caso Amanda Knox e Raffaele Sollecito” deixou a Justiça e a Polícia italianas na berlinda, e parte da mídia também. Ela é norte-americana, e ele, italiano.

Amanda Knox e Raffaele Sollecito eram namorados há quatro anos atrás, quando foram acusados e depois condenados a 26 e 25 anos de prisão, respectivamente, pelo assassinato da estudante britânica Meredith Kercher, em Perugia, na Itália. Nesta segunda-feira uma corte de apelação anulou a  decisão anterior. A corte, composta por dois juízes togados e seis jurados leigos, não só considerou uma falta de provas, como também, na prática, os inocentou das acusações.

Um terceiro condenado pelo crime, o marfinense (de nascimento)/italiano Rudy Guede, conhecido por ser traficante de drogas e pela prática de outras contravenções menores, está cumprindo pena de 16 anos por “co-autoria” do crime. Agora sua situação se complica mais, porque no atual estado da arte ele permanece sendo o único acusado pelo crime.

Este ocorreu na noite de 1 para 2 de novembro de 2007, no chalé em que Knox e Kerchner moravam com outras jovens e outros jovens (todos ausentes). Kerchner foi encontrada morta por esfaqueamento na garganta, além de outras feridas generalizadas por seu corpo, que também tinha sinais de violência sexual.

A principal evidência contra Knox e Sollecito constava de traços de DNA do segundo encontrados 47 dias depois num sutiã da vítima, além de traços de DNA dela e de Sollecito, além de Knox, numa faca encontrada na casa dele, supostamente a arma do crime. Essas evidências foram desqualificadas por uma equipe de dois investigadores forenses independentes, alegando possibilidade de “contágio” por erros de manipulação da primeira equipe de investigação. Além disso, Knox alegou ter sido tratada de modo brutal e ameaçador pelos procuradores e policiais que a interrogaram, sobretudo num interragatório de 14 horas feito principalmente pelo procurador senior de Perugia, Giuliano Mignini, hoje condenado (em apelação) por manipulação num outro caso anterior.

Na ocasião e depois a mídia dividiu-se, tanto na Itália quanto nos Estados Unidos e na Inglaterra, e também em outros países, com parte dela dando tratamento sensacionalista ao caso, fosse contra ou a favor dos dois principais acusados. A polícia e os procuradores contribuíram para isso de um modo peculiar.

Esse modo consistiu numa dificuldade em definir um motivo para o crime, se cometido pelos dois então namorados, com uma participação secundária do terceiro acusado, Rudy Guede. Várias teorias foram elaboradas para explicar a motivação. Houve menção sucessivamente a um ritual satânico, a uma tentativa de orgia sexual que deu errada, a furto de dinheiro por parte de Knox para comprar drogas de Guede, entre outras elocubrações, que foram ao ponto de apontar Knox como portadora de dupla personalidade, uma angelical, outra demoníaca. Ficou conhecida a expressão “anjo com olhos de gelo” para caracteriza-la.

Em busca de detalhes sensacionais, alguns repórteres induziram – isso ficou evidente – “testemunhas” a afirmações duvidosas sobre terem visto os dois namorados tomando diferentes atitudes antes, durante e depois do crime. Alguns desses depoimentos foram contestados posteriormente, mas isso não foi levado em conta nem pela polícia, nem pela Justiça.

Outras circunstâncias foram claramente subestimadas, para confirmar a tese de que os dois enamorados tinham cometido o crime. A principal delas foi que no corpo da vítima foram encontrados indícios de DNA apenas de Guede, de um modo descrito como “tanto por fora como por dentro dele”, indício de que, se a vítima fora violentada, a única certeza que se poderia ter era a de que apenas ele participara do ato. Além disso, encontrou-se também uma impressão digital sua, marcada com o sangue de Kercher, no recinto do crime. Outra circunstância que nào foi levada em conta foi a de que, dos três acusados, apenas ele fugiu de Perugia, sendo preso na Alemanha dias depois por viajar num trem sem o devido bilhete.

Uma outra circunstância complicadora do caso inteiro foi a de que a seguir Guede foi condenado a 30 anos de prisão, mas teve essa pena comutada num tribunal de apelação depois de dois fatos relevantes: 1) ele optou por um “julgamento rápido”(fast track trial, em inglês, em que o acusado não contesta as provas circunstanciais apresentas contra ele) e 2) na apelação ele mudou o seu depoimento, incriminando diretamente Sollecito e Knox.

O caso ainda passará por apelações, sem dúvida. Mas Knox está autorizada a deixar a Itália para os Estados Unidos, e Raffaelle também está em liberdade. Ela foi condenada por, em seus depoimentos, ter levantado falso testemunho contra o dono de um bar em que trabalhava de vez em quando, o congolês Diya “Patrick” Lumumba, que foi inocentado e processou a jovem por calúnia. Pode-se atribuir esse gesto de Knox ao seu desespero e confusão diante da acusação de que era alvo, além de que há sinais claros de que ela e o namorado estavam praticando sexo na casa dele, bastante “embalados”, provocando lapsos nas respectivas memórias. Knox foi sentenciada a três anos de prisão por esse crime e a uma indenização de 29 mil dólares. Mas como ficou quatro anos presa, a pena foi mais do que cumprida.

De tudo, é possível tirar algumas conclusões:

1) Ninguém trará Meredith Kercher de volta. Isso é uma perda irreparável.

2) Tampouco serão devolvidos a Knox e Sollecito os quatro anos que passaram na prisão. Isso também é uma perda definitiva.

3) Os procedimentos policiais e judiciários nesse caso estão em foco e exame, como altamente inadequados. É verdade que ao fim e ao cabo a Justiça italiana se redimiu, com a última decisão. Mas fica o “lisim” a macular a cena. “Lisim”: ferida, mácula, sulco.

4) Cada caso é um caso, sem dúvida, e deve ser examinado em suas próprias circunstâncias. Mas fica o alerta para aqueles que, no passado recente, atacavam furiosamente o ex-ministro Tarso Genro e o ex-presidente Lula por suas decisões no caso Cesare Battisti, alegando total e cega confiança na Justiça e na Polícia italianas. Cega deve ser a Justiça. E só ela.