Estrada longa, com pão de queijo e cachaça

As 25 horas de viagem de São Paulo a Ribeirão Cascalheira, no Mato Grosso, são apenas o começo

Ivanilde é uma veterana militante que dá a impressão de ser durona. Mas a primeira leitura se desfaz logo nos primeiros quilômetros (Foto: © Douglas Mansur)

Mineiros (GO) – Escolher o parceiro de poltrona parece tarefa tola, mas é crucial em se tratando de uma viagem de mais de 30 horas. Por sorte, Ivanilde Jardim é de prosa boa e ajuda a passar mais rápido o trajeto de 1.600 quilômetros entre São Paulo e Ribeirão Cascalheira, no Mato Grosso, onde se realiza no fim de semana a Romaria dos Mártires da Caminhada.

Ivanilde é uma veterana militante que dá a impressão de ser durona. Mas a primeira leitura se desfaz logo nos primeiros quilômetros, ainda na capital paulista, quando ela saca do meio dos embrulhos uma branquinha curtida com banana. “É para a celebração”, explica – e não toma. Justo. A cachaça é do coletivo, como tudo que se abre neste ônibus que transporta integrantes das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) a caminho do Araguaia.

Tudo começou pela esfirra, e logo vieram pão de queijo, goiabinha, torta, cerveja, refrigerante, água, e se recomeça com nova rodada, e assim sucessivamente, sem que a mão e o estômago fiquem vazios. Ao fim de cada refeição, gengibre para, digamos, refrescar a boca – há um certo know how para a vida de romeiro.

Nisso, Ivanilde acumula expertise. Vem pela quarta vez à Romaria dos Mártires, e aos 66 anos tem disposição de viajar o Brasil em caravanas para vários eventos religiosos e sociais. Desta vez, viaja-se em ônibus fretado e bem equipado. Há 15 anos, na primeira viagem a Ribeirão Cascalheira, o transporte foi feito por ônibus de linha comuns, em mais de 60 horas. Vai ver que é por isso que encara com olímpica tranquilidade a atual jornada. “É uma troca de experiências muito interessante”, resume ao comentar o que virá.

Caminho longo

Custa chegar ao destino. Na noite desta sexta-feira (15), enquanto se redige esta matéria, aproximam-se as 24 horas do começo da viagem, e entre idas e vindas calcula-se haver mais 12 de chão. O Mato Grosso ainda nem chegou. O caminho de São Paulo, Mato Grosso do Sul e Goiás é de pouco mato, muito pasto, cana-de-açúcar, milho e algodão. Os romeiros não deixam de registrar que passam por áreas afetadas por trabalho degradante e um modelo de desenvolvimento que prefere o lucro à segurança alimentar. Um dos motivos da celebração em Ribeirão Cascalheira é a disputa de terras, que acabou por vitimar, em 1976, o padre João Bosco Burnier, uma das muitas vítimas da luta fundiária no Araguaia.

Para os romeiros, o grande exemplo é dom Pedro Casaldáliga, durante décadas o responsável pela Prelazia de São Félix do Araguaia, ponto de resistência e de apoio a indígenas, camponeses e ribeirinhos. Os integrantes do ônibus que deixou São Paulo dispostos a cruzar parte do Brasil organizam uma carta coletiva a ser entregue a Casaldáliga. O importante, apesar do imenso trajeto, é chegar para a celebração do sábado, e todos levam com paciência a viagem. Conversa, cantos e reza compõem o trajeto.

Ivanilde troca experiências há três décadas. O falecimento precoce do marido, quando tinha 31 anos e três filhos pequenos, provocou a mudança do Rio Grande do Sul para a zona leste de São Paulo. “Com o dinheiro era o que dava para comprar”, pontua. O pai e o sogro não se conformavam que uma moça com crianças fosse morar sozinha em uma região que consideravam “de comunista”. Valeu a pena. Lá, praticava naturalmente a vizinhança solidária, comum para quem cresceu na roça em Jacarezinho, no Paraná. Foi simples também que começasse a atuar nas comunidades eclesiais.

Tempos difíceis

Boa parte dos romeiros tem críticas à maneira como a Igreja Católica, enquanto instituição, vem sendo conduzida. Gostariam que fosse mais receptiva à participação popular e aberta a um trabalho de base. Ivanilde não vê bom bons olhos as correntes carismáticas, que pregam uma igreja desligada da política, e lamenta também o fechamento na sacristia, desconectada de contato da porta para a fora. Quando os carismáticos chegaram à paróquia na qual atuava, decidiu marchar para outra. “Não vou ficar de tarefeira de paróquia. Que sentido tem isso?”, indaga.

Ela acumula desapontamentos ao longo da vida de batalhas – reforma agrária, barragens, PT, guerra do Iraque –, mas não se dá por vencida. “A gente precisa pensar no projeto de país que queremos deixar. Hoje é só barganha política, não se tem um projeto”.

Essa militante prima pela coerência. Escolheu o Corinthians como time. “É popular. Quando ganha, para o corintiano é o que basta.” O Corinthians perde, o Corinthians ganha, mas a caravana não para. O Araguaia é a próxima parada.

João Peres e Douglas Mansur viajam a Ribeirão Cascalheira (MT) para acompanhar a Romaria dos Mártires. Os relatos e fotografias são publicados neste blogue, criado exclusivamente para a cobertura