Tratado como ídolo, Lula apresenta Dilma a catadores e moradores de rua

Se fosse futebol, algum comentarista de televisão acrescentaria que Lula é um técnico que sabe falar a linguagem do boleiro (Foto: Ricardo Stuckert/PR) São Paulo – Nos anos 1990, era […]

Se fosse futebol, algum comentarista de televisão acrescentaria que Lula é um técnico que sabe falar a linguagem do boleiro (Foto: Ricardo Stuckert/PR)

São Paulo – Nos anos 1990, era um lugar comum simplificar os motivos por que o Brasil não dava certo à falta de um ídolo aos mais jovens. Essa ausência, diziam os entendidos da época, tinha um grave reflexo sobre as perspectivas dos brasileiros e sobre o planejamento do futuro. Se esse problema realmente existiu, eis um lugar comum que desaparece neste 2010. Ao despedir-se dos compromissos oficiais em São Paulo nesta quinta-feira (23), o presidente Luiz Inácio Lula da Silva teve o raro privilégio – talvez se possa dizer inédito – de um chefe de Estado que sai nos braços do povo.

A festa de Natal com moradores de rua e catadores de materiais recicláveis figura entre os eventos que contaram com a presença de Lula em cada um dos oito anos de mandato – e agora com a promessa de que Dilma Rousseff, a presidente eleita, continuará a frequentar a celebração. Em 2010, o ato encerra a Expocatadores, um evento de debates sobre políticas públicas para coleta seletiva e reciclagem promovido por movimentos de catadores com patrocínio de empresas estatais.

Na edição deste ano, como nas demais, nenhum esforço da equipe de segurança foi capaz de conter a empolgação dos mais de dois mil presentes à cerimônia. O presidente, com olhos recorrentemente marejados, tampouco parece se incomodar com as dezenas de abraços de quem dribla o aparato da Presidência. São muitos os presentes, fotos, camisetas, recortes de jornal, cartas e todo tipo de lembrança que possa ser entregue ao presidente na esperança de que uma recordação seja especial entre tantas.

Ouça a íntegra:
Confira a fala do presidente Lula no encontro de Natal com os catadores e moradores de rua

Quem propalava o lugar comum idolátrico da década de 1990 queixava-se que os únicos brasileiros admirados pelos jovens e pelo mundo diziam respeito ao esporte: Pelé e Ayrton Senna. Fosse, pois, um treinador de futebol, Lula estaria deixando o time com uma excelente avaliação dos atletas e da torcida, com um pedido de “vê se dá notícias”, com o gosto de uma despedida forçada.

De todo modo, seguindo na metáfora futebolística – em estilo que tanto agrada ao presidente –, fica em seu lugar a treinadora indicada por ele. Dilma Rousseff demonstrou que sabe conquistar o grupo. No primeiro contato com os jogadores, anuncia que vai herdar do atual comandante alguns de seus hábitos, como o de passar o Natal na companhia do time. “É um símbolo do meu compromisso com vocês de construir esse caminho que o presidente abriu.”

Sem esconder segredos, Lula conta como conquistou o apoio do elenco: “Quando é que se imaginou que o presidente do BNDES viria a um encontro com catadores de papel? Jamais. (…) Essa quantidade de ministros, a Fundação Banco do Brasil. Dois presidentes de uma vez só. O entrante e o sainte”, diverte-se.

Se fosse mesmo futebol, algum comentarista de televisão acrescentaria que Lula é um técnico que sabe falar a linguagem do boleiro. Mas, como é um presidente, mais fiel é o retrato dado pela população. “A matemática antes era muito simples: se não havia contagem (da população de rua), então não havia população de rua, e portanto não precisava de políticas públicas”, pensa Maria Lúcia Santos Pereira, representante do Movimento Nacional da População de Rua, que considera que finalmente acabou a invisibilidade social desse grupo.

Gilberto Carvalho, chefe de Gabinete da Presidência da República, lembra que, infelizmente, algumas administrações municipais hesitam em permitir que catadores e moradores de rua sejam vistos como cidadãos. “Não é possível que o poder público não encontre uma resposta para o problema dessas pessoas. É a mentalidade geral do governante brasileiro. Para aquele que aparentemente só ‘incomoda’ (o poder público), você tenta tirar da rua, mandar para a prisão, tenta de alguma forma fazer desaparecer.”

A cada Natal, uma série de acordos são assinados nesta cerimônia. Sempre numa quadra ou num galpão lotado, gente do Brasil inteiro vibra a cada avanço que se consegue. Em 2009, a boa notícia foi a assinatura do Plano Nacional da População de Rua. Este ano, foram implementadas algumas das políticas previstas no plano, além da assinatura da Política Nacional de Resíduos Sólidos e o Programa Pró-Catador. Ficou para terça-feira (28) a assinatura de Medida Provisória que dá incentivos tributários aos empresários que comprem materiais recolhidos por catadores.

“Lula é trabalhador, humano, uma pessoa que sofreu e que conseguiu manter a personalidade”, resume o artista plástico Ubiratan Freire, de 57 anos. Nesta festa, regada a calor e a bom humor de fim de ano, Lula é aplaudido como sempre, mas ovacionado de uma forma especial, quase caótica, eufórica, assustadora.

A alegria de quem se despede. “A rua cata, a rua canta e encanta com luta” e “A luta é boa, a luta é dura, mas continua”: são as frases pintadas no painel do evento. Uma síntese dos sentimentos do dia. Lula deixa a Presidência, o povo segue sua luta de sempre, e fica em companhia de alguém em quem confiar. Se Dilma será, no próximo Natal, tão idolatrada quanto o antecessor, é difícil prever.

À medida que vai deixando de ser presidente, por outro lado, Lula volta ao nível dos humanos. “O compromisso que tenho com vocês não é porque eu era o presidente. É o compromisso de um ser humano, de um brasileiro que sabe a importância que vocês têm”, diz o presidente. Sempre que se faz humano, Lula se faz ídolo.