Vice-presidente da Bolívia afirma que continuidade de marcha revela fins eleitorais

ONU condena repressão policial que desencadeou crise no governo de Evo Morales, e embaixador cobra coerência entre o discurso e a prática do presidente

Boliviano do território indígena e parque nacional Isiboro Secure entra em confronto com a polícia (Foto: ©Davi Mercado/Reuters)

São Paulo – Os bolivianos que marcham desde 15 de agosto contra a construção de uma estrada que vai cortar terras indígenas no leste do país decidiram, nesta quinta-feira (29), retomar a caminhada em direção ao Palácio Quemado, em La Paz, sede do Executivo. O vice-presidente Álvaro García Linera acusou os integrantes da marcha de terem outros interesses muito além da suspensão das obras.

Segundo os organizadores da marcha, das 2 mil pessoas que saíram do Território Indígena Parque Nacional Isiboro Sécure (Tipnis), apenas mil retomaram o protesto após a violenta repressão policial do último domingo (25). Os excessos desencadearam uma crise no governo Evo Morales, com a saída de quatro integrantes do primeiro escalão. Nos últimos dias, os manifestantes cuidaram de procurar companheiros que seguiam escondidos no meio da mata, e agora acreditam que têm condições de empreender a rota rumo à capital, distante 330 quilômetros.

Para o vice-presidente, se o tema do protesto era a reivindicação de que a rodovia não fosse construída no parque, o protesto não teria motivos para ser retomado. “Pois bem, senhores, (a estrada) não será construída pelo parque desde que se realize este encontro e se decida o que fazer”, afirmou Linera durante entrevista à imprensa. Ele enfatizou ainda que o governo espera um retorno sobre o convite aos manifestantes para que debatam uma saída para o caso. “Se este não era o motivo fundamental para marcha é o que se vai saber nas próximas horas. Se o motivo era proclamar um novo candidato político, isso vai aparecer. Se o motivo era provocar mal-estar e desgaste no governo, isso também já ocorreu.”

A obra deve atravessar um milhão de hectares do Tipnis, onde vivem integrantes das etnias indígenas Chimán, Yucararé e Mojeño. A marcha teve início cobrando a revogação da obra, considerada desnecessária pelos moradores locais. A construção tem custo orçado em US$ 415 milhões e é tocada pela construtora brasileira OAS, com US$ 335 milhões em financiamento do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES).

Nesta semana, Evo Morales ofereceu a realização de um plebiscito nos departamentos (equivalentes aos estados, no Brasil) de Cochabamba e Beni, afetados pela rodovia, mas os manifestantes querem uma lei que revogue qualquer possibilidade de que a construção ocorra em suas terras. “O governo tem de se dar conta de que há gente de direita próxima ao presidente Evo Morales, o que está fazendo com que ele cometa alguns erros”, avaliou Octavio Urquizo, dirigente da Central Obrera Boliviana (COB).

O embaixador da Bolívia na Organização das Nações Unidas (ONU), Pablo Solón, acrescentou que a reivindicação do povo é justa e que o país deve cuidar para não cair em contradição. Ele lembrou que o governo atual propôs medidas de vanguarda na preservação do meio ambiente e no respeito aos direitos humanos, e exatamente por isso não tem o direito de reprimir manifestações. “Deve haver coerência entre o que dizemos e o que fazemos. Não se pode falar em defesa da Mãe Terra e ao mesmo tempo promover a construção de uma estrada que fere a Mãe Terra”, disse em carta enviada ao Palácio Quemado.

Investigação

Enquanto isso, seguem as tentativas de Morales de reduzir os estragos provocados pela leitura negativa da repressão policial. Nesta quinta, o gabinete anunciou que representantes da União de Nações Sul-Americanas (Unasul) e da Organização dos Estados Americanos (OEA) foram chamados a integrar a comissão que será responsável por investigar os abusos policiais. Na quarta-feira (28), Morales já havia convidado a ONU a nomear integrantes.

Além disso, García Linera, também presidente da Assembleia Nacional Plurinacional, convocou os ministros da Presidência, Carlos Romero, e de Obras Públicas, Walter Delgadillo, a prestar esclarecimentos sobre a repressão. Ao mesmo tempo, quatro altas autoridades do governo, entre eles dois ministros, entregaram os cargos ou foram demitidos.

Linera reafirmou nesta quinta que a ordem para a repressão não saiu dos altos escalões do governo, e indicou que apenas a investigação poderá provar quem é o responsável pelos fatos. Ao mesmo tempo, ele acusou uma tentativa de partidarizar o debate por parte de setores da imprensa interessados em desgastar Morales. “Que baixem os ânimos. Paciência, serenidade. E seriedade na investigação.”

O escritório da ONU para Direitos Humanos na Bolívia condenou o uso excessivo da força policial, afirmando que cabe às autoridades do Executivo a proteção de todas as pessoas em exercício de seus direitos fundamentais, como a liberdade de expressão e o direito à livre manifestação. Ao mesmo tempo, os representantes das Nações Unidas viram como correta a atitude do presidente de convocar uma comissão para apurar os fatos. Em nota, destaca-se a necessidade de encontrar uma saída de consenso ao caso.

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