Lei Maria da Penha, 4 anos: hora de mudar mentalidade machista

Quatro anos depois da sanção da Lei Maria da Penha, Rede Brasil Atual ouve nove ativistas do movimento de mulheres sobre a lei que protege vítimas de violência

A secretária de Políticas para as Mulheres, Nilcéia Freire, homenageia a biofarmacêutica Maria da Penha Maia Fernandes na solenidade do prêmio de boas práticas na aplicação, divulgação e implementação da lei que leva seu nome (Foto: Renato Araújo/ABr)

São Paulo – No dia 7 de agosto de 2006, foi sancionada a Lei 11.340. Batizada como Lei Maria da Penha, a norma estabelece regras mais rígidas aos agressores. A celeridade na prisão e instrumentos que criam formas de proteção das vítimas e de seus filhos são apontados como principais avanços.

Para marcar o aniversário da conquista, Rede Brasil atual ouviu nove ativistas do movimento de mulheres no Brasil. Cada uma delas foi questionada se a lei contribui para reduzir a vulnerabilidade das mulheres, os avanços nos últimos quatro anos e o que precisaria ser feito para melhorar a aplicação da norma.

Elas consideram que a lei é um marco na luta por igualdade, mas defendem a necessidade de mudanças de mentalidade.

Confira os principais trechos das respostas:

Maria da Penha Maia

Farmacêutica e ativista. Por sua história de vida, marcada por duas tentativas de homicídio contra ela pelo próprio marido, e pela luta em defesa dos direitos das mulheres, a lei ganhou seu nome.

Nem todas as mulheres têm acesso a lei. A gente tem encontrado uma estrutura relativamente boa nas grandes cidades, mas nos pequenos municípios ocorre a falta de equipamentos locais e equipes para atendimento. A imprensa responsável tem colocado que o aumento de denúncias não quer dizer o aumento de casos. O aumento de denúncias está relacionado à credibilidade da lei nas instituições. Hoje, no município que é divulgado um centro de referência, ou que existe trabalho divulgando a lei e encorajando a mulher a denunciar, tem tido bons resultados.
O acesso vai melhorar com a divulgação e a promoção da lei. Assim, vai fazer com que as pessoas entendam que a violência contra a mulher é crime, e que os olhos das instituições sempre foi fechado para esse tipo de crime. Agora, as mulheres e a sociedade estão mais atentas para cobrar punição para os agressores.
A situação de quatro anos atrás não tem comparação com a de hoje. Muitas mulheres atualmente já ouviram falar na lei. Elas podem até não saber exatamente como funciona, mas elas já se apoderam e citam a lei para se proteger.

 

Nilcéa Freire

Ministra da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres

A lei preconiza a criação de novas estruturas, como os juizados especializados na violência contra a mulher. Essas estruturas não existiam antes. Essa lei, como outra qualquer, precisa de um tempo para ser completamente incorporada tanto pela sociedade quanto pelo aparato do Estado. É fundamental a realização de campanhas sistemáticas, educativas, que coloquem para sociedade de uma maneira geral a necessidade de uma mudança cultural. A violência contra a mulher não é uma violência como outra qualquer. Ela se baseia nessa desigualdade entre homens e mulheres e precisa ser olhada segundo uma outra ótica. Inicialmente havia uma dificuldade de aceitação da própria lei no judiciário. Não em todas as instâncias, nem em todos os estados, mas em juizados de primeira instância, com juízes que alegavam a inconstitucionalidade da lei. Mas isso vem diminuindo por conta do trabalho feito com os sistemas de Justiça. À medida que as políticas avançam, vão sendo quebradas as resistências relativas especificamente à Lei Maria da Penha, que se devem ao machismo, à cultura de desigualdade que existe na sociedade brasileira, também presente no Judiciário.

 

Sarah De Roure

Integrante da Sempreviva Organização Feminista (SOF) e militante da Marcha Mundial das Mulheres

A lei trouxe para o debate público o tema da violência contra a mulher, mas o fato de existir a lei não decreta o fim da violência. Ela permite que isso se torne um tema de debate público, então deixa de ser um tema privado das mulheres e passa a ser um problema público e político, diante do qual o Estado e as autoridades precisam se pronunciar.
É um instrumento ao qual as mulheres podem recorrer, devem recorrer e tem recorrido. Isso é muito importante.
Existe uma outra verdade, o fato de que a lei nem sempre é implementada. Essa aplicação não ocorre principalmente porque as instituições também expressam o pensamento machista presente na sociedade. A capacitação dos profissionais é importante , mas não é tudo. O machismo e a forma de encarar essa violência precisa mudar. Ter a lei ajuda, mas não resolve, nós defendemos o fortaleciemnto do sistema judicial, penal e principalmente a superação da desigualdade.

 

Maria Amélia de Almeida Teles

Coordenadora do Projeto Promotora Legal Popular e integrante da União de Mulheres de São Paulo

A lei é muito boa, obriga o Estado a tomar medidas concretas para interromper o ciclo da violência e para erradicá-la, mas a mentalidade não mudou. A mentalidade ainda é de agressividade contra a mulher, inclusive dos próprios operadores dos serviços.
A violência existiu antes da lei e continua existindo. Essa violência ainda é pouco notificada, então não temos parâmetros para medir se houve redução. Falta uma leitura da lei de forma a contemplar as necessidades da vítima da violência, que são as mulheres.
Hoje todo mundo conhece a lei de ouvir falar e sabe que ela é utilizada para o combate a violência doméstica, porém é difícil saber o que determina exatamente a lei. As instituições mais envolvidas com essa implementação precisam ter uma atuação mais coerente com a lei, e essa atuação deve servir também como um instrumento pedagógico e ensinar mulheres e homens.

 

Rosane da  Silva

Secretária de mulheres da Central Única dos Trabalhadores (CUT)

Nós (mulheres) conseguimos aprovar uma lei que, de fato, foi uma luta importante das mulheres do Brasil, tanto as feministas como dos movimentos de mulheres. Esses movimentos que sempre defenderam uma legislação que não só punisse os agressores mais que desse toda a proteção as mulheres.
Com a conquista da Lei Maria da Penha, temos um instrumento que consideramos fundamental para que as mulheres sejam de fato protegidas. Mas, infelizmente, nem todos os governos estão comprometidos com a erradicação dessa violência. O governo federal tem todos os recursos, por meio do Pacto de Combate à Violência, que deveria ser assinado pelos governos estaduais e depois aplicado aos municípios. Porém, nem todos os governos assinaram.
Para nós, da CUT, não basta só a legislação e sim uma política de estado. Infelizmente, os estados governados pela direita do nosso país não tem compromisso com o combate à violência contra as mulheres, até porque o projeto de país que eles defendem é machista e capitalista.
Nós queremos um modelo para o nosso país que tenha política que garanta emprego para as mulheres, financiamento para as mulheres no campo e possibilite que elas tenham autonomia econômica. Isso é fundamental para que as mulheres deixem de ser agredidas em suas casas.
Quando a gente não tem emprego, não tem política econômica especifica, as mulheres ficam dependentes dos agressores e acabam não denunciando a violência por causa dessa dependência.

 

Luciana Passinato

Diretora nacional do Movimento de Mulheres Camponesas (MMC)

A Lei Maria da Penha é instrumento legal de combate as diversas faces da violência. No combate à violência doméstica, por si é um avanço, não há como recuar. Com a lei, hoje, tudo o que acontece fica explícito e há um debate sobre a questão, sobre a violência que é doméstica, patrimonial, um conjunto de violências que se mostra pela violência física.
É preciso aumentar a participação da mulheres na implementação da lei e defender o empoderamento das mulheres. Sem dúvida a lei contribuiu para reunir as mulheres que agora conversam sobre suas vidas e se ajudam.
Nós, do MMC, defendemos três ações para combater melhor a violência: a divulgação da lei e o entendimento de seus detalhes, a soliedariedade entre as mulheres – já que dificilmente uma mulher agredida vai tomar sozinha uma atitude – e a cobrança diante do Estado para a lei ser aplicada.
O Estado precisa capacitar melhor os profissionais que lidam com as vítimas, formar equipes multidisciplinares para abordar tanto o lado psicológico quanto o econômico e outros aspectos. Por fim o Estado precisa reconhecer que se é necessário criar uma lei para a violência contra a mulher, também é preciso assumir que nossa sociedade é patriarcal e machista.

 

Ana Teresa Iamarino

Coordenadora de acesso à Justiça e Combate à Violência da Secretaria de Políticas para Mulheres

No âmbito legal é a primeira iniciativa de proteção às mulheres. Antes da Lei Maria da Penha, não tinha nada especifico de rede de proteção às mulheres, porque a lei vai além da questão da punição. Não é uma lei estritamente penal, pois também prevê medidas protetivas às mulheres. Hoje, o Estado se responsabiliza pela situação das mulheres que apresentam histórico de violência.
A partir disso, temos um aumento significativo no número de serviços especializados que vão desde a delegacia especializada, passando pelo centro de referência, que presta serviços psicológicos e de assistência social para resgatar a autoestima e a autonomia.
Tudo tem garantido que as mulheres, que se encontram nessa situação, possam buscar ajuda e respaldo para elas. O poder Judiciário tem uma tradição conservadora, legalista e acaba se prendendo a alguns detalhes que prejudicam a interpretação da lei e dessa forma aplicam de maneira incorreta. Nossa avaliação é de que quatro anos é muito pouco para essas instituições mudem sua forma de trabalhar.
Na sociedade há uma aceitação muito grande da lei, 85% da população conhece e aprova segundo um levantamento (Pesquisa Ibope/Instituto Avon) a lei. Reconhecemos um avanço enorme, porém, as bases da nossa cultura ainda são machistas e ainda há alguma incompreensão da importância e do papel da lei.
Há estatíticas da aplicação da lei, mas o problema é a centralização desses dados, que estão nas secretarias estaduais de segurança pública e cada tribunal tem seus dados. As informações mais sistematizadas que temos são as provenientes da Central de Atendimento à Mulher, o Ligue 180. Todas as nossas políticas são baseadas nesses dados.

 

Silvia Dantas

Integrante do Fórum de Mulheres de Pernambuco e da Comissão de Ação e enfretamento  à violência contra as mulheres e monitoramento da Lei Maria da Penha

A implantação dos serviços de proteção às mulheres, propostos na Lei, não é suficiente para deixar a mulher menos vulnerável, embora eles contribuam para coibir os crimes de violência contra as mulheres.
A redução da vulnerabilidade depende também de uma mudança de mentalidade na nossa sociedade. Para isso, precisamos que as escolas desenvolvam propostas pedagógicas que incluam a educação para os direitos humanos das mulheres. É preciso também que os diversos segmentos sociais façam a sua parte.
A implantação possibilitou que as mulheres tivessem a quem recorrer em caso de violência. Precisamos que os serviços de proteção sejam mais bem divulgados. Não basta que os serviços sejam implantados, é necessário que eles sejam de qualidade, que tenham equipe multiprofissional e profissionais devidamente capacitados.
Antigamente os casos de violência passavam despercebidos. Hoje, as pessoas têm auxiliando as mulheres a procurar apoio. A existência da lei “desnaturaliza” a violência e, com isso, as pessoas se tornam mais ativas ajudando as mulheres a pedir proteção.

 

Rebecca Reichmann Tavares

Representante do Unifem Brasil e Cone Sul (Fundo de Desenvolvimento das Nações Unidas para a Mulher, parte da ONU Mulheres)

Os casos de violência contra a mulher não reduziram e todas estão expostas à violência. Ainda sim, a Lei Maria da Penha é um marco por estabelecer punições para a violência contra as mulheres. Também dá mais visibilidade aos casos de violência e incentiva a população para a busca de direitos. Embora esteja entre as três melhores legislações do mundo, a Lei Maria da Penha ainda precisa ser rigorosamente aplicada.
É urgente mais investimentos para o funcionamento da rede de atendimento à mulher, formação de profissionais da segurança pública, da saúde e operadores de direito. Hoje, com a lei, existe um quadro mais real do fenômeno da violência contra as mulheres e seu impacto na sociedade brasileira. É preciso que o sistema de proteção às mulheres funcione e não enfrente os obstáculos impostos pelas relações de gênero, nas quais os assuntos relacionados aos direitos humanos das mulheres não tenham tanta importância e investimentos.
Um dos grandes feitos da Lei Maria da Penha é o seu amplo conhecimento na sociedade e a compreensão das mulheres de que seus direitos são humanos. Quer dizer, elas têm direito a uma vida sem violência, digna e independente. Essa convicção faz com que as mulheres possam buscar ajuda e romper com uma história de violência, por mais difícil que isso possa parecer. Elas entendem que a Lei Maria da Penha pode ser a sua salvação para a construção de uma nova história de vida.